TL 01: DÉFICIT DE ATENÇAO OU DESLIGAMENTO AUTOMÁTICO: DISCUTINDO O DIAGNÓSTICO EM GESTALT-TERAPIA COM CRIANÇAS E ADOLESCENTES

Autores

  • Mabel Pereira

Resumo

TL 01: DÉFICIT DE ATENÇAO OU DESLIGAMENTO AUTOMÁTICO: DISCUTINDO O DIAGNÓSTICO EM GESTALT-TERAPIA COM CRIANÇAS E ADOLESCENTES Mabel Pereira RESUMO A Gestalt-terapia apresenta uma concepção de diagnóstico que difere do modelo clássico, pois sua visão de ser humano é incompatível com a categorização e causalidade que tal psicodiagnóstico propõe. Porém, por diversas vezes, o gestalt-terapeuta se vê diante de um cliente que já foi diagnosticado por outro profissional e traz consigo esse “rótulo”. Esta situação é particularmente comum na clínica de crianças e adolescentes e coloca o profissional em uma delicada situação: como o diagnóstico realizado segundo sua abordagem se articula com aquele que seu cliente já traz? O presente trabalho tem como objetivo contribuir para esta discussão na abordagem gestáltica com crianças e adolescentes trazendo como exemplo de trabalho o relato do atendimento de um cliente diagnosticado com Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade. Palavras chave: Criança, Déficit de Atenção, Psicodiagnóstico PROPOSTA A mãe de Paulo, 12 anos, procura terapia para o filho a partir de um encaminhamento de uma professora do curso de inglês, que aponta a dificuldade do adolescente em prestar atenção nas aulas e realizar as tarefas. Trouxe consigo um laudo de uma neurologista atestando TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade, tipo predominantemente desatento). Paulo tomou metilfenidato por um ano sem que a família notasse nenhuma melhora no quadro. Sua mãe fala muito sobre como seu filho é desligado e preguiçoso, queixa-se de ter que arrumar todas as coisas da escola, seu quarto, lembrá-lo de fazer os trabalhos de casa e estudar com ele. Diz que se não fizer essas coisas, ele não faz nada, não termina nenhuma tarefa. Queixa-se do filho não ter interesse pelo estudo, ou por leituras ou esportes. Queixa-se também do marido que, segundo ela, não se implica nas coisas da casa e do filho, acha que apenas trabalhar é o seu papel. O pai afirma que sua esposa trata Paulo como um bebê, mas reconhece que o filho tem muitas semelhanças com ele: nunca gostou de estudar, apenas trabalha para prover o que a casa necessita e quando chega à casa só quer ficar tranquilo na televisão ou no computador. Paulo se mostra inicialmente na terapia como um menino extremamente tímido e calado, muitas vezes parece estar alheio às intervenções da terapeuta ou ao que está sendo falado sobre ele quando participa das sessões com seus pais. Quando questionado, simplesmente balança os ombros ou fala de forma quase incompreensível. Nas sessões individuais, a terapeuta consegue uma aproximação através de coisas que Paulo demonstra interesse, como determinados programas de televisão, músicas ou os peixes do seu aquário. Dedicava muito tempo em leituras sobre espécies de peixes e formas de criá-los, e cuidava de seu aquário da melhor forma possível. Cabe ressaltar que tanto os programas televisivos, quanto a música e os peixes eram classificados pela mãe como coisas de pouco valor educativo e, portanto, pouco valorizados. Aos poucos, terapeuta e cliente constroem uma relação de confiança e ele começa a trazer suas questões como a dificuldade nos estudos e a relação com seus pais. Fala o quanto sua mãe é repetitiva e queixosa e nesse momento identifica, junto com a terapeuta, que desenvolveu uma forma de lidar com essas falas intermináveis dela através de um mecanismo que nomeou como “Desligamento Automático”. Inicialmente, este “desligamento” era feito de forma deliberada: quando sua mãe começava a fazer discursos longuíssimos sobre a importância do estudo, da prática de esportes, da necessidade de se ter as coisas organizadas e de ser responsável, Paulo simplesmente desfocava sua atenção para qualquer outro pensamento que lhe ocorria e permanecia olhando para ela, porém sem nada ouvir. Com o tempo, isso se tornou um hábito, ele já não mais percebia quando se desligava e essa atitude se estendeu para todos os assuntos desagradáveis da sua vida, incluindo as aulas da escola. Foi o próprio Paulo que relacionou o diagnóstico de Déficit de Atenção com seu mecanismo de “Desligamento Automático”, podendo questionar o estigma que há tanto tempo carregava. Em Gestalt-terapia compreendemos o ser humano como um organismo integrado e imerso em um campo que o constitui. Isto significa dizer que tudo o que acontece com este homem está intimamente relacionado com a sua totalidade e com o contexto do qual faz parte. Não há como pensar nenhum comportamento como um aspecto inerente à natureza de determinado sujeito e que possa ser explicado por apenas um aspecto da sua existência. Perls, Hefferline e Goodman (1997) definem a Gestalt-terapia como uma abordagem unitária, que leva em consideração o campo interacional e não o homem como um ser isolado. O diagnóstico em Gestalt-terapia se afasta, portanto, de uma visão causal e linear característica da forma tradicional de se classificar o homem em categorias estáticas. Frazão (1996) aponta para a necessidade de pensarmos o diagnóstico como um processo, que descreve a existência do cliente no momento presente e que deve ser atualizado em toda terapia. Falamos então em uma compreensão diagnóstica, que leva em consideração a experiência do cliente, em suas singularidades e comunalidades, e a relação entre ela e o campo o qual ele faz parte. Aguiar (2005) aponta que, quando recebemos um cliente com um diagnóstico realizado a partir dos manuais de psicopatologia, sabemos apenas o que é comum e regularmente presente nos indivíduos que possuem tal categorização. Porém não sabemos a respeito do cliente e de como o que ele compartilha com outros indivíduos que possuem o mesmo diagnóstico articula-se com suas especificidades. A autora ainda aponta que não é necessário se contrapor a estes manuais, uma vez que suas definições são primordialmente descritivas e que nossa compreensão diagnóstica vai além destas regularidades. Paulo apresentava algumas características semelhantes às descritas no DSM-IV para o Transtorno de Déficit de Atenção, como a dificuldade para organizar tarefas e atividades, a evitação de tarefas que exijam esforço ou concentração prolongados e a impressão de estar com a mente em outro local, não escutando o que lhe é dito. Porém, para um gestalt-terapeuta, esta constatação não abarca os demais aspectos de sua existência e não nos basta como diagnóstico. Também não buscamos encontrar causas ou culpados para tal situação, mas temos que construir nossa compreensão do que acontece com o cliente levando em consideração suas necessidades, suas relações e seu contexto. Neste caso, percebemos que Paulo desde que nasceu foi tratado de forma superprotetora por esta mãe, que sempre se esforçou para atender todas as suas necessidades. Por exemplo, sempre que ele falava da sua forma habitual – quase como um murmúrio – sua mãe “traduzia” o que o filho estava querendo dizer. Diante do distanciamento do pai, esta “unidade relacional” mãe-filho se tornou mais forte e todos na família atuavam sob a crença na incapacidade de Paulo realizar suas coisas sozinho. Além disso, a família divergia quanto a valores e aspectos de sua educação. Enquanto o pai não dava muita importância ao estudo – dizia que o importante era Paulo concluí-los da forma que fosse possível – sua mãe estava na terceira faculdade e afirmava que o filho tinha que se esforçar para ser o melhor e tirar notas altas. A mãe cobrava de Paulo um interesse por atividades extra-curriculares, mas Paulo se identificava muito com o jeito do pai (ambos tinham um temperamento mais tranquilo e calado) e preferia passar seu tempo livre diante da televisão, como ele. Sua escola era tradicional e rígida, os conteúdos eram passados de forma pouco interativa e não havia um interesse em compreender as necessidades particulares de cada aluno. Por ter sido diagnosticado pela neurologista como portador de TDAH, Paulo fazia parte – contra sua vontade – do “programa especial” para alunos com este transtorno. Este programa consistia em provas orais que tinham como objetivo compensar a dificuldade de concentração, mas que para Paulo eram um enorme fardo, por sua timidez excessiva. Com isso, ele confirmava sua sensação de ser incapaz e “burro” e seu interesse pelas aulas e tarefas escolares diminuía cada vez mais. Todos estes aspectos aliados à observação feitas nas sessões com Paulo formaram um enorme quebra-cabeças que auxiliou a terapeuta a compreender o que se passava com este adolescente para além das descrições contidas no laudo psicopatológico. Enquanto o Déficit de Atenção era apenas um diagnóstico dado por uma outra pessoa e desconectado das questões existenciais de Paulo, o “Desligamento Automático” foi criado por ele e, portanto, já trazia consigo uma maior implicação do cliente e uma maior compreensão da relação que este “sintoma” tinha com os demais aspectos da sua existência. Como afirma Aguiar (2005): “Na medida em que percebemos a criança como uma totalidade que interage com seu meio, buscando de todas as formas a melhor configuração para seu estar no mundo, seu sintoma não pode ser encarado como algo destacado do seu todo e destituído de qualquer função. Pelo contrário, ele se apresenta como a melhor forma possível encontrada pela criança como um todo de se ajustar criativamente a um meio muitas vezes adverso e pouco facilitador” (p.132). O trabalho com Paulo caminhou no sentido de dar a ele uma maior compreensão daquilo que se passava consigo, tornando-o atento para algo que já havia se tornado parte de sua fisiologia secundária (Perls, Hefferline & Goodman, 1997). Paulo evitava entrar em contato com estas questões de estudo e escola para evitar confrontar sua própria fantasia de que era menos capaz e inteligente que os outros meninos da sua turma. Além disso, a terapeuta pôde aos poucos questionar a responsabilidade de Paulo diante destas tarefas que considerava chatas, como estudar. Ele percebeu que não se implicando e não se responsabilizando por suas tarefas e estudo, corroborava o discurso da sua mãe sobre sua incapacidade de se virar sozinho e dava a ela ainda mais conteúdo para seus longos sermões. Paralelamente, um longo trabalho com os responsáveis foi realizado para mostrar a ambos que o “Déficit de Atenção” do filho não era um problema inato ou herdado geneticamente, mas que se relacionava com as questões da dinâmica familiar e escolar e com as próprias questões de Paulo. A importância de dar a Paulo maior autonomia e responsabilização diante de suas tarefas foi muito trabalhada com esta mãe, que inicialmente temia um fracasso total do filho como estudante caso ele ficasse por conta própria. A reflexão acerca do seu papel foi proposta ao pai, que reconheceu precisar se implicar mais nas questões do filho, inclusive incentivando-o a estudar e propondo que realizassem juntos a prática de algum esporte. Toda esta discussão não tem como objetivo determinar uma única forma de se trabalhar com um cliente diagnosticado como portador de TDAH, mas pelo contrário, visa ilustrar uma possibilidade de trabalho que vai muito além deste diagnóstico inicial. Assim como Perls, Hefferline & Goodman (1997), compreendemos os sintomas de Paulo como as melhores respostas que ele pôde organizar neste momento e o objetivo primeiro da terapia não é acabar com estes sintomas, mas evidenciar como eles servem para a manutenção da forma de funcionamento do cliente e desta família e auxiliar todos os envolvidos a construir outras formas mais saudáveis de lidar com estas questões. BIBLIOGRAFIA AGUIAR, L. Gestalt-terapia com crianças. Campinas: Livro pleno, 2005. DSM-IV - Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. Porto Alegre: Ed. Artes Médicas, 1995. FRAZÃO, L. M. Pensamento Diagnóstico Processual: uma visão gestáltica de diagnóstico. In: Revista do II Encontro Goiano de Gestalt-terapia, Goiânia: 1996. PERLS, F. HEFFERLINE R. & GOODMAN P. Gestalt-terapia. São Paulo: Summus, 1997.

Publicado

2014-09-18