REIS, Andreza Nathielly Batista. – “Alterando a figura e o fundo: Potter na Gestalt-Terapia.”

ARTIGO

Alterando a figura e o fundo: Potter na Gestalt-Terapia

Changing figure-ground: Potter in Gestalt Therapy

Andreza Nathielly Batista Reis

RESUMO

O presente estudo teórico foi feito a partir das reflexões propostas na disciplina Fundamentos Epistemológicos da Psicologia e busca demonstrar como a Gestalt-terapia pode ser encontrada no nosso cotidiano. Para isso, é feita uma relação entre aspectos dessa abordagem teórica com o que é apresentado na saga de livros Harry Potter. Conceitos como Awareness, responsabilidade e o método fenomenológico são abordados e exemplificados através do acontecimento dos livros. Conclui-se que é possível observar e aprender sobre a Gestalt-terapia através de aspectos simples do nosso cotidiano.

Palavras-chave: Gestalt-terapia, Literatura, Harry Potter, Psicologia

ABSTRACT

This theoretical study was based on reflections proposed in the subject Epistemological Foundations of Psychology and aims to demonstrate how Gestalt Therapy can be found in our daily lives. For this, a relationship is made between aspects of this theory with what is presented in the Harry Potter book saga. Concepts such as Awareness, responsibility and the phenomenological method are approached and exemplified through the events of the books. It is concluded that it is possible to observe and learn about Gestalt Therapy through simple aspects of our daily lives.

Keywords: Gestalt therapy, Literature, Harry Potter, Psychology


“– Me diga uma última coisa – disse Harry. – Isso é real? Ou esteve acontecendo apenas em minha mente? Dumbledore lhe deu um grande sorriso, e sua voz pareceu alta e forte aos ouvidos de Harry, embora a névoa clara estivesse baixando e ocultando seu vulto. – Claro que está acontecendo em sua mente, Harry, mas por que isto significaria que não é real?

(Harry Potter e as relíquias da morte)

INTRODUÇÃO

A Gestalt-terapia aparece, inicialmente, como uma abordagem teórica da psicologia, contudo o Gestalt-terapeuta Serge Ginger e a Gestalt-terapeuta Anne Ginger (1995) afirmam que “A Gestalt, para além de uma simples psicoterapia, apresenta-se como uma verdadeira filosofia existencial, uma ‘arte de viver’, uma forma particular de conceber as relações do ser vivo com o mundo.” (p.17). Entretanto, essa “arte de viver” não é normalmente reconhecida pelas pessoas, mesmo que elas tenham um contato direto com ela. O quero dizer é: as pessoas não conhecem a Gestalt-terapia e por isso não a reconhecem no seu dia a dia, embora, de acordo com Perls (1977), ela seja tão antiga quanto o mundo.

Dessa forma, no presente estudo teórico, fruto do trabalho final da disciplina “Fundamentos Epistemológicos da Psicologia”, pretendo analisar a saga de livros Harry Potter (1997-2007), sob a luz de conceitos e pressupostos da Gestalt-terapia, traçando, dessa forma, uma relação entre ambos.

Relacionar a saga Harry Potter com a Gestalt-terapia é uma forma de explicitar como essa arte de viver está presente nas nossas vidas e mostrar como histórias podem nos ensinar além do que nós imaginamos, caso alteremos o que é figura e o que é fundo dentro da narrativa.  

Nesse sentido, uma rápida busca realizada na base Google Acadêmico, demonstrou a existência de apenas um trabalho que tratava do tema Harry Potter e da Gestalt-terapia, mas que possuía como foco a as intervenções realizadas em um grupo de leitura (Viera; Buendgens; Visentainer, 2020). Assim, este trabalho também busca ampliar a literatura da área e promover a expansão de temas de estudo da Gestalt-terapia.  

Para fazer essa associação procurei iniciar deslegitimando a principal crítica feita aos livros de Harry Potter, classificando a saga como literatura, de acordo com o conceito de Terry Eagleton. Em seguida, busquei justificar porque seria possível fazer essa correlação entre os temas, a partir da perspectiva de Nelly Novaes Coelho. Posteriormente, parti para definição de Gestalt-terapia. Como essa linha terapêutica é muito vasta, me detive na discussão de seu método, do conceito de Awareness e de responsabilidade, vinculando-os aos livros de Rowling.

A RELAÇÃO: ONDE OCORRE O CONTATO

Em primeiro lugar, decido partir da discussão menos usual no meio psicológico: o que é literatura? Esta pode parecer uma pergunta desnecessária a este trabalho, mas ela se torna imprescindível quando lembramos os objetos que estão sendo relacionados: a saga de livros Harry Potter e os pressupostos da Gestalt-terapia.

Como um sucesso mercadológico voltado para o público infanto-juvenil, a saga escrita por J. K. Rowling (1997-2007) sofreu diversas críticas desde sua ascensão. Muitas dessas críticas contestavam a validade dos livros enquanto literatura. Nakagome e Francisco (2015), afirmam que “para tratar da [suposta] prosa rasa e dos personagens planos criados por Rowling, a única justificativa dada é de que toda a obra já tinha vendido milhões de exemplares ao redor do mundo.” (p.04).

Esse dado reflete um caráter elitista presente na literatura, fruto de um jogo de poder sobre o que pode ser narrado e quem pode conduzir a narrativa (Castello; Medeiros; Almeida, 2019): as massas não poderiam saber o que é uma boa obra literária e os cânones literários só poderiam ser lidos por poucos. Assim, se um livro é muito vendido, ele não poderia – de acordo com essa visão restrita - ser considerado boa literatura. Pressuponho, desse modo, que seja necessário deixar nítido o conceito de literatura que uso neste trabalho, buscando fugir dessa visão elitizada e restrita e que, obviamente, engloba Harry Potter como literatura.

O crítico literário britânico, Terry Eagleton (2006), fez um passeio sobre as diversas definições do que é a literatura no seu livro Teoria da literatura: uma introdução. Após expor e analisar diversas acepções possíveis acerca da literatura, Eagleton parece estar satisfeito com aquela que toma literatura como qualquer tipo de escrita que seja altamente valorizada, devido a juízos de valores da época. Dessa forma, a saga Harry Potter se encaixa no parâmetro descrito por Eagleton (2006) uma vez que, apesar das muitas críticas, seus livros são altamente valorizados pelo seu público-alvo – e também por muitas pessoas que não fazem parte desse grupo.

Entendendo que a principal crítica aos livros dessa saga não faz sentido nos estudos literários atuais, sigamos para a história: Harry Potter, um jovem órfão que mora com os tios tiranos, aos onze anos de idade descobre que é um bruxo, tem uma vaga na escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts e que teve seus pais assinados pelo bruxo das trevas Voldemort. A partir disso, o jovem Harry embarca em sua jornada pelo mundo da magia, numa luta contra o maligno Lord Voldemort. Com esse enredo como central, a história de Potter se desenvolve em sete grandes volumes.

Apesar de ainda apresentar o tom maniqueísta da luta do bem contra o mal, a história se desenrola com personagens complexos, dinâmicos e, mesmo com toda fantasia da saga, muito reais. Voldemort, o vilão, pretende subjugar pessoas que não são bruxas. Seu objetivo é promover uma limpeza racial por acreditar que algumas pessoas são melhores do que outras com base no seu sangue. Infelizmente, ideias racistas como essa não aparecem apenas no mundo da fantasia.

Harry Potter surge, então, como um protagonista que viveu toda a sua infância sendo maltratado por pessoas não bruxas e poderia sucumbir facilmente as ideias racistas de Voldemort. Entretanto, o jovem teve seus pais assassinados pelo vilão, o que o leva a tê-lo como inimigo mortal. Ainda assim, ao longo do seu percurso Harry não aparece como um personagem perfeito: ele faz amigos, rivais, mágoa pessoas, erra, se desculpa, se arrepende, sofre, se apaixona. Ele vive as emoções de um adolescente comum na escola, conhece um mundo da magia que também é permeado por preconceitos e elitismo, junto ao peso de ser arqui-inimigo de um bruxo extremamente poderoso e maligno. Nesse processo, Harry cresce e aprende.

É válido ressaltar que Potter sempre aprendeu muito com o contato: ele teve diversos mentores e mentoras que o ajudaram a percorrer esse caminho. Dentre eles, destaca-se Dumbledore, diretor de Hogwarts e um poderoso bruxo “do bem”, que auxilia Harry a compreender como derrotar Voldemort. O curioso desse processo é que o artifício utilizado por Dumbledore não é ensinar a Harry os feitiços mais avançados: o bruxo prepara Potter para enfrentar Voldemort através do autoconhecimento. Ele explica a Harry a sua história, os motivos de Voldemort desejar o poder e desejar matá-lo, explica os riscos e os perigos dos caminhos tomados pelo bruxo e explica como Harry tem a opção de fazer diferente.    

Dumbledore mostra que, embora Harry e Voldemort sejam personagens rivais, eles têm muito em comum e que Harry precisa ter ciência disso caso ele deseje, de fato, derrotar Voldemort e seguir um caminho outro. Mas o que os torna diferentes? O que os angústia como sujeitos? Quais são seus ajustamentos criativos? Podemos assistir em suas histórias conflitos inerentemente humanos.

A doutora em letras Nelly Novaes Coelho, em seu artigo O fenômeno Harry Potter e o nosso tempo em mutação, expõe sua crença de que a saga apresenta metáforas e alusões da vida que, para o leitor jovem e que busca por aventuras é absorvido apenas de maneira indireta. Entretanto, para um leitor mais treinado e com um maior repertório teórico que esteja “Fazendo a sua leitura através dessa ótica [teórica], a fascinante/prazerosa aventura do mago Harry Potter revela sua essencial sintonia com este nosso tempo em mutação [...].” (Coelho, 2008, p.04). Partindo dessa inferência de Coelho, acredito que é possível aprender e apreender conceitos da Gestalt-terapia através da leitura das mágicas aventuras de Potter.

Isso posto, partamos agora para a discussão mais usual no mundo da psicologia: ao que me refiro quando falo em Gestalt-terapia? Como o próprio nome já explicita, a Gestalt-terapia é uma terapia que dá ênfase na tomada de consciência do/a paciente em relação a si mesmo e a sua relação com o mundo (Silva; Rabelo; Yano, 2023), buscando trazer o foco do indivíduo para o presente, ou seja, o aqui e agora – lembrando que o aqui e agora engloba lembranças do passado e expectativas para o futuro, desde que esses aspectos estejam presentes para a pessoa naquele momento.

Essa abordagem foi inaugurada pelos, até então, psicanalistas Fritz e Laura Perls, em 1951. Em sua constituição essa linha terapêutica sofreu influência de diversas teorias e posturas filosóficas, como por exemplo, a psicologia da Gestalt, a fenomenologia, o existencialismo, a psicologia topológica, a psicologia organísmica, a psicanálise, o humanismo e filosofias orientais. Aqui já podemos ver a riqueza que a Gestalt-terapia apresenta, pois sua construção foi híbrida e diversificada, juntando diversas partes para formar um novo todo significativo.

De acordo com Fritz Perls (1977, p. 32), “A Gestalt é tão velha como o próprio mundo”, desse modo, ele não se vê como fundador da Gestalt-terapia e sim como seu redescobridor. Acredito que se possa dizer que Perls teve o que os/as Gestalt-terapeutas chamam de Insight - “Insight, em inglês, ou satori, em hindi: conscientização repentina e ‘evidente’, como que por ‘iluminação’.” (Ginger; Ginger,1995, p.26) -, ou seja, uma reorganização do seu campo perceptual de modo que novas realidades significativas se formam como figura/foco.

Sendo assim, não se torna estranho que possamos identificar elementos do que ele intitulou de Gestalt-terapia na nossa vida cotidiana, ou até mesmo em livros infanto-juvenis como Harry Potter, já que a Gestalt-terapia sempre existiu, só não era nomeada e organizada em um todo significativo: uma Gestalt.

Para começarmos a identificar alguns elementos da Gestalt-terapia na história de Potter, bem como na nossa vida cotidiana, irei discorrer primeiro sobre o método utilizado por esses/as terapeutas, ou seja, o método fenomenológico. A fenomenologia, fundada por Edmund Husserl, se propõe a ser uma ciência que foca no estudo das coisas mesmas, ou seja, dos fenômenos, tal como se apresentam ao/a observador/a. Nesse sentido, a intencionalidade da consciência seria a peça-chave para compreensão dos fenômenos: sempre direcionamos nossa atenção para algum objeto, de modo que toda consciência é consciência de alguma coisa (Lind, 2022; Oliveira; Cunha, 2021).

Nota-se que a fenomenologia é uma ciência em si mesma, mas que foi adotada enquanto método pela Gestalt-terapia, por carregar consigo uma filosofia aberta ao mundo que é vivido antes de ser/receber um significado (Ribeiro, 2011). De acordo com esse método o/a terapeuta utiliza-se do estilo descritivo no trabalho com o/a seu/sua paciente, pois isso possibilita que a pessoa possa “construir gradativamente o significado do material que traz para sessão, sem a interferência de qualquer ‘a priori’ do terapeuta, seja de caráter teórico ou oriundo dos próprios valores.” (Aguiar, 2014).

Através da descrição o/a terapeuta auxilia o/a paciente a dar-se conta de assuntos que são o foco ou que ficam em segundo plano nas suas vidas, mas que interferem diretamente nela. Utilizando o método fenomenológico, o/a terapeuta pode causar uma mudança no campo perceptual do/a paciente ao descrever o que foi trazido por ele/a de uma forma diferente, questionar o porquê do/a paciente descrever aquilo daquela forma ou até mesmo voltar sua atenção para elementos trazidos pelo/a paciente, mas que não foram focados ou articulados por ele/ela.

É sobre o que foi vivenciado no aqui-agora, sobre sair da posição de suposto saber e abrir a consciência para si e para o outro como ele se apresenta.  Assim, o método fenomenológico propicia, por meio da descrição das coisas mesmas, a busca pela singularidade do sujeito, colocando-o como referência da sua própria realidade e possibilitando visitar e revisitar os fenômenos (Ribeiro, 2011).

Tal artifício pode ser encontrado nos livros de Harry Potter, em especial no sexto volume da saga, o enigma do príncipe, no qual Harry é convidado a assistir na penseira – objeto mágico que reproduz as lembranças das pessoas - memórias do passado de Voldemort junto a Dumbledore. Após assistir as memórias, Harry e Dumbledore sempre conversavam sobre o que foi visto, trazendo destaque para alguns aspectos, ou descrevendo o que foi visto de modo a tornar figuras determinadas perspectivas da cena vista. Potter, assim como os/as leitores/as, são convidados/as a abrirem-se ao outro, sem julgamentos, sem “a prioris”, tendo apenas o outro como seu referencial.

Como frisa Dumbledore no capítulo treze do livro: “Mas, antes de nos despedirmos, quero chamar sua atenção para certos detalhes da cena que acabamos de presenciar, porque têm muita pertinência para os assuntos que iremos discutir nas próximas reuniões.” (Rowling, 2005, p. 217). Desse modo, o menino Potter, bem como os/as leitores/as do livro, são convidados/as a mudar o foco de suas atenções, transformando diferentes questões em figura e fundo, na tentativa de compreender melhor o Voldemort do presente e como Harry Potter se relaciona com ele.

Dessa forma, o método fenomenológico convida o/a terapeuta a agir de forma ativa com seu/sua paciente, mas sem carregá-lo por um determinado caminho: eles dialogam (Yontef, 1993): “O Gestalt-terapeuta diz o que ele pensa e encoraja o paciente a fazer o mesmo. O diálogo gestáltico autêntico incorpora autenticidade e responsabilidade.” (Yontef, 1993, p.18-19).

Esse aspecto fenomenológico também pode ser reconhecido na relação entre Harry e Dumbledore: o diretor conversava com Harry, expunha suas opiniões e escutava as do garoto; indicava para ele novas perspectivas de observação da sua experiência, mas nunca determinava qual o caminho seguir e nem o modo que Harry deveria interpretar as coisas. Dumbledore falava apenas o necessário para que Harry pudesse tomar consciência dos seus atos sozinho mesmo que, por vezes, isso irritasse o garoto: “De tempos em tempos, a raiva por Dumbledore tornava a desabar sobre ele, poderosa como as ondas que se atiravam contra o paredão de pedra abaixo do chalé, raiva de que o diretor não tivesse explicado tudo antes de morrer.” (Rowling, 2007, p. 392).

A raiva de Harry se fazia presente por acreditar que havia um caminho correto a ser seguido e que Dumbledore sabia qual era esse caminho (como as pessoas costumam acreditar que os/as psicólogos/as sabem), quando na verdade existiam possibilidades e o diretor fez de tudo para que Potter pudesse ter consciência suficiente do seu Espaço Vital (pessoa em um dado recorte do mundo) de forma que ele conseguisse distinguir e escolher quais possibilidades seguir para alcançar seu objetivo final: derrotar Voldemort.

Além de compreender o método fenomenológico é importante ter ciência do motivo do seu uso: ele possibilita o melhor estabelecimento da Awareness no indivíduo. Awareness vem do inglês e, literalmente, significa consciência. Contudo, Gestalt-terapia não é apenas isso: “Awareness é uma forma de experiência que pode ser definida aproximadamente como estar em contato com a própria existência, com aquilo que é.” (Yontef, 1993, p.30), é o dar-se conta, é quando o indivíduo se percebe percebendo a si mesmo/a e ao mundo, é quando se está ciente de suas ações e do ambiente que o/a cerca.

É possível verificar o processo de Awareness em Harry Potter ao ter um olhar mais amplo para toda a saga: é no sétimo livro que Harry consegue dirigir autonomamente suas ações, tendo consciência do ambiente onde ele está e onde ele já esteve, percebendo os efeitos de suas ações passadas e como eles interferiam nas suas escolhas no presente. Ele finalmente entende que ser o menino que sobreviveu não é um decreto e sim o fruto das relações estabelecidas até o momento.

Potter compreende o que aconteceu e se compreende no meio disso tudo. Ainda assim é válido ressaltar que ampliar suas percepções sobre si mesmo/a e sobre o mundo é um processo. Harry Potter levou sete grandes livros para dar-se conta da principal Gestalt da sua vida e, assim, conseguir fechá-la. Assim como no livro, compreender as implicações das nossas experiências pode levar tempo.

Gary M. Yontef (1993) em seu livro Processo, Diálogo e Awareness: ensaios em Gestalt-terapia afirma que ter uma Awareness efetiva “[...] requer não apenas autoconhecimento, mas um conhecimento direto da situação atual e de como o self está nessa situação.” (p.31). Tais aspectos também podem ser percebidos na história do bruxo, já que Potter busca compreender o seu passado e do seu inimigo para saber como isso o afeta no presente – no aqui e agora. Tal processo é expresso pelo próprio Potter em Harry Potter e as relíquias da morte, quando ele anuncia para Voldemort: “Sei coisas que você ignora, Tom Riddle. Sei muitas coisas importantes que você ignora.” (Rowling, 2007, p. 574), ou seja, ele tem uma visão total da sua situação o que lhe permite ter uma Awareness eficiente no momento.

Ter uma Awareness, “ter contato com a própria existência” (Yontef, 1993, p.30), nos leva a percepção que somos seres ativos na nossa própria vida. Melhor dizendo: que escolhemos e temos responsabilidade por nossas escolhas.  Talvez seja por isso que “Em Gestalt, cada um é responsável por suas escolhas e suas evitações.” (Ginger; Ginger, 1995, p.18). Desse modo, “[...] a Gestalt-terapia coloca uma seríssima obrigação para cada pessoa: avaliar e escolher.” (Yontef, 1993, p.33).

Essa obrigação trazida pela Gestalt-terapia é abordada em Harry Potter o tempo todo. Ao longo dos sete livros da saga, é exposto que nossa vida é feita de escolhas e que temos que arcar com as consequências do que escolhemos. O próprio Harry, por exemplo, não escolheu ter seus pais assassinados, mas foi uma escolha pessoal sua lutar contra Voldemort. Como disse Dumbledore no segundo volume da saga: “São as nossas escolhas, Harry, que revelam o que realmente somos, muito mais do que as nossas qualidades.” (Rowling, 2000, p. 280), por isso é preciso estar ciente do seu eu e do seu ambiente no momento para agir da maneira mais adequada para si. Assim, a leitura da saga faz, o tempo todo, com que o/a leitor/a se depare com a necessidade dos/as personagens (assim como a necessidade da própria pessoa) fazerem escolhas e lidarem com o produto de suas práticas.

É importante ressaltar que, ao encarregar o sujeito de sua própria conduta, a Gestalt-terapia, além de trazer um sentimento de responsabilidade, também pode auxiliar na redução do sentimento de culpa: eu não sou o/a causador/a de tudo que ocorre no mundo, mesmo que a ação alheia me afete, devo apenas responder por minhas próprias escolhas. Assim, a Gestalt-terapia convida o sujeito ao ajustamento criativo as situações vividas, em um movimento conjunto de criação da realidade: mesmo não sendo responsável por tudo que lhe acontece, a pessoa é responsável pela maneira como irá reagir, se posicionando e se reposicionando frente a vida (Cardella, 2014).  

E isso se torna perceptível na saga de Potter, pois Harry se sente culpado por todas as mortes que ocorreram enquanto ele tentava liquidar Voldemort, até que, no momento que despertou a sua Awareness, ele percebe que, na verdade, as pessoas que morreram sabiam dos riscos que corriam, mas acreditavam que valia a pena o sacrifício. Desse modo, a responsabilidade pessoal de Harry o alivia dessa culpa e lhe auxilia a lidar com a perda.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Buscando abordar a relação entre Harry Potter e a Gestalt-terapia, de modo a expandir a literatura da área e promover uma mudança de perspectiva na forma como apreendemos determinados conceitos, procurei demonstrar, com o presente trabalho, que a leitura de livros infanto-juvenis feita sobre uma ótica diferente pode nos conduzir muito além de algumas horas de diversão. Ela é capaz de nos guiar para caminhos da reflexão e do autoconhecimento.

Acredito, dessa forma, que a Gestalt-Terapia pode conduzir as pessoas a um maior conhecimento de si e do ambiente em que ela se encontra, ao convidar o indivíduo a perceber novas perspectivas e a experimentar o novo.

Considero também que as ligações entre Harry Potter e a Gestalt-Terapia não se encerram aqui. Muitas outras associações e ponderações podem ser feitas a respeito de como ambos possuem semelhanças, confluências e exemplos práticos de conceitos. Se, como Eagleton (2006, p. 17) escreve “[...] uma obra pode ser considerada como filosofia num século, e como literatura no século seguinte [...].”, então talvez – e aqui eu faço uma abstração – a história de Potter pode se tornar um exemplo da Gestalt-terapia aplicada na literatura.

Ademais, julgo importante destacar que é preciso se manter atenta/o: o conhecimento pode vir de diversas fontes, mas é preciso estar disponível o suficiente para captá-lo, o absorver e assim, mudar a si mesma/o.

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Endereço Eletrônico: Andreza Nathielly Batista Reis

Email: desa_nathy@hotmail.com

Submetido em: 8 de agosto de 2023

Publicado em: 5 de abril de 2024

v. 21 n. 39 (2023): Sumário – IGT na Rede, vol. 21, Nº 39, p.  –. Disponível em http://www.igt.psc.br