175
ARTIGO
O acompanhante terapêutico como ferramenta de intervenção nos ajustamentos de isolamento social orientado pela Gestalt-terapia
The therapeutic companion as an intervention tool in the adjustments of social isolation guided by Gestalt therapy.
Marcus Cézar de Borba Belmino
Antônio Francisco de Lima Neto
Revista IGT na Rede, v. 19, nº 37, 2022. p. 175 – 199. Disponível em http://www.igt.psc.br/ojs ISSN: 1807-2526
176
RESUMO
A proposta deste trabalho é discutir a leitura gestáltica sobre a experiência do Transtorno do Espectro Autista e como o Acompanhamento Terapêutico (AT) pode ser uma estratégia de intervenção. Para isso, foi discutido como a Gestalt-terapia busca compreender o espectro autista e o modo como essa experiência acontece em face às demandas sociais, denominado essa forma de experiência de ajustamento de isolamento social. Superando a lógica tradicional dos diagnósticos, há uma tentativa de reafirmar o olhar sobre o espectro enquanto manifestação de singularidades e não enquanto um transtorno fixo a ser enquadrado. Frente a essa compreensão, ressaltamos o Acompanhamento terapêutico como ferramenta de intervenção aliada a luta antimanicomial, com atuação para além do setting terapêutico, utilizando do meio social e seus diversos contextos como forma de ampliar as possibilidades de inclusão e contratualidade do sujeito acompanhado e, com isso, produzir uma intervenção que atenda as perspectivas éticas, políticas e antropológicas dos dispositivos de cuidado segundo a Gestalt-terapia
Palavras-chave: Gestalt-terapia, self, transtorno do espectro autista, acompanhamento terapêutico, ajustamento de isolamento social.
ABSTRACT
The purpose of this paper is to discuss the Gestalt reading about the experience of the Autistic Spectrum Disorder and how the Therapeutic Accompaniment (TA) can be an intervention strategy. For this, it was discussed how Gestalt-therapy seeks to understand the autistic spectrum and how this experience happens in face of social demands, denominating this form of experience adjustment to social isolation. Overcoming the traditional logic of diagnoses, there is an attempt to reaffirm the view of the spectrum as a manifestation of singularities and not as a fixed disorder to be framed. Faced with this understanding, we highlight the Therapeutic Accompaniment as an intervention tool allied to the anti-mental institution struggle, acting beyond the therapeutic setting, using the social environment and its diverse contexts as a way to expand the possibilities of inclusion and contractuality of the accompanied subject and, with this, produce an intervention that meets the ethical, political and anthropological perspectives of the care devices according to Gestalt-therapy
Keywords: Gestalt-therapy, self, autistic spectrum disorder, therapeutic accompaniment, social isolation adjustment.
Revista IGT na Rede, v. 19, nº 37, 2022. p. 175 – 199. Disponível em http://www.igt.psc.br/ojs ISSN: 1807-2526
177
Introdução
Apesar de ser um tema relativamente novo, a Gestalt-terapia e o acompanhamento terapêutico junto a sujeitos com Transtorno do Espectro Autista (TEA), apresenta-se enquanto uma alternativa teórica-metodológica para estabelecer intervenções com sujeitos que fazem ajustamentos autistas. O Acompanhante terapêutico sob o viés da Gestalt-terapia entra como uma forma de reencontrar o lugar do indivíduo em seu meio, propondo uma clínica em trânsito que se dispõe ao acompanhamento nos mais diversos espaços com intuito de advogar a inclusão, sendo considerado um trabalho político em que incentiva o contato para que aconteça de forma saudável, abrandando os impactos psíquicos, fomentando um ajustar-se criativamente.
A Gestalt-terapia é uma abordagem desenvolvida por Frederick e Laura Perls, que segundo Da Silva (2011, apud Ribeiro, 2007) as suas principais bases filosóficas são Humanismo, Existencialismo e Fenomenologia, assim como a Psicologia da Gestalt, Teoria do Campo e Holismo-Organismico. É uma teoria sobre compreensão da experiência humana, a qual vê sujeito como um ser em constante transformação, organismo este que busca comumente satisfazer suas necessidades. Focaliza o processo terapeuta-cliente no aqui e agora, com o objetivo de tornar a experiência do sujeito mais consistente.
Considera o sujeito como um fenômeno que se revela lentamente, visto como um ser complexo, que se reorganiza constantemente de acordo com as suas necessidades (FREITAS, 2016). Essas mudanças ocorrem dentro do sistema denominado Self, no qual Muller-Granzotto (2004) define como um processo temporal dentro de um sistema de contatos no presente transiente dividido em função id, função ego e função personalidade. Vale salientar que é a leitura sobre o espectro autista na Gestalt-terapia que será apresentada neste trabalho, estando baseada especificamente na noção de self, pois é devido a mesma que se pode compreender como o indivíduo experiencia o mundo.
Na tentativa de definir o Transtorno do Espectro Autista (TEA), a APA (2013) em seu quinto Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM V), delimita como déficits persistentes na comunicação social, padrões restritos e repetitivos, prejuízo clinicamente significativo no funcionamento social, profissional ou em outras
Revista IGT na Rede, v. 19, nº 37, 2022. p. 175 – 199. Disponível em http://www.igt.psc.br/ojs ISSN: 1807-2526
178
áreas importantes da vida do indivíduo no presente, além de atraso no desenvolvimento.
Vale ressaltar que mesmo com a leitura do DSM V para facilitar a comunicação entre profissionais, o principal foco está na experiência e nos ajustes que o indivíduo faz ao longo do desenvolvimento. O autismo não é um diagnóstico de tamanho único, embora a Associação Americana de Psiquiatria defina o autismo, o diagnóstico será sempre impreciso, essa é a natureza do espectro (GRANDIN, 2015).
Diante disso, o trabalho de um Acompanhante Terapêutico surge nesse contexto como uma ferramenta de intervenção, por não basear sua atuação nessa estrutura fixa e rotulada como apresentado pelo manual. Ele visa incentivar a inclusão, expandindo o diálogo com seu contexto, sempre atento às formas de contato e a singularidade do sujeito, facilitando o despertar da awareness a partir das interações e atividades. Segundo Sereno (2006) o Acompanhante Terapêutico opera como secretário, intérprete e tradutor da ambiência, favorecendo importantes efeitos de subjetivação e conexão entre os elementos dos mais diversos espaços ocupados pelo sujeito. Sua importância está na implicação do compromisso social, com a inclusão e as possibilidades de ser um indivíduo ativo em seu meio, apoiado na luta antimanicomial.
Assim, este trabalho tem a tarefa de analisar a experiência do sujeito no espectro autista através da teoria do Self proposta pela Gestalt-terapia. Apontando para um fazer psicológico que expande sua prática para além do setting terapêutico, explorando os diversos contextos, como no caso do Acompanhamento terapêutico, atuação em que é utilizada como ferramenta facilitadora nos ajustamentos de isolamento social, leitura da própria Gestalt-terapia sobre o espectro autista.
Também é esperado que este trabalho possa ser apoio teórico para fomentar as possibilidades de atuação enquanto acompanhante terapêutico na Gestalt-terapia. Para isso, foi utilizada a pesquisa bibliográfica com temas ligados ao interesse pessoal do pesquisador, fomentando uma maior proximidade com a temática, contribuindo com o referencial teórico no campo acadêmico.
Revista IGT na Rede, v. 19, nº 37, 2022. p. 175 – 199. Disponível em http://www.igt.psc.br/ojs ISSN: 1807-2526
179
Metodologia
Diante disso, a pesquisa tem sido qualificada enquanto exploratória por tratar-se da leitura de assuntos já discutidos, Gil (2002) afirma que este tem o propósito de proporcionar maior afinidade com a problemática, com vista a torná-lo mais explícito ou a construir hipóteses.
Não obstante, foi utilizada a abordagem qualitativa, na qual possibilita que o pesquisador se aproxime do tema de forma a analisar e explorar aquilo que é do seu interesse, na tentativa de elaboração de novos saberes. Desse modo, não há referência a uma entidade unitária; pois se refere às práticas de indagação do social. Portanto, o escopo da pesquisa qualitativa é amplo e variado (GONZALEZ, 2020).
É empregado a metodologia bibliográfica por fundamentar-se em obras já publicadas por diversos autores, fomentando a leitura, interpretação e análise, para então serem descritos. Diante disso, foram utilizados livros e artigos científicos, tendo os descritores “Gestalt-terapia”, “self”, "autismo'' e “acompanhamento terapêutico” como base para as pesquisas. No banco de dados do Google Acadêmico, a partir dos anos 2000, com pesquisa na revisão de artigos apenas em português, foi possível utilizar 19 artigos dentre os 60 que foram encontrados, justamente por estar alinhado com a temática deste trabalho. Além disso, também foi possível utilizar cerca de oito livros com os presentes descritores.
Fundamentação teórica
Gestalt-terapia visão de sujeito
Em 1951, Fritz Perls, Paul Goodman e Ralph Hefferline publicam o livro Gestalt Therapy: excitement and growth in the human personality, na qual descreve sobre o que é a Gestalt-terapia e sua compreensão de mundo. No entanto, em 1946, Fritz Perls juntamente a sua esposa Laura Perls, já sinalizavam o início de uma nova abordagem psicoterapêutica em 1941 com a publicação do livro “Ego, fome e agressão”, com releituras sobre as teorias psicanalíticas, não sendo bem aceito pelo corpo freudiano por apresentar divergências. Nasce então a Gestalt-Terapia, na qual Perls, Hefferline e Goodman (1997) em que definem a psicologia como o
Revista IGT na Rede, v. 19, nº 37, 2022. p. 175 – 199. Disponível em http://www.igt.psc.br/ojs ISSN: 1807-2526
180
estudo da operação da fronteira de contato no campo organismo/ambiente, e o estudo dos ajustamentos criativos na qual sempre resulta em assimilação e crescimento.
É uma abordagem que busca superar as dicotomias mente/corpo, organismo/ambiente, na verdade trazendo que o todo é bem maior que a soma das partes, isso quer dizer que ela trabalha com uma visão holística do sujeito, um ser total e global em que é inevitável a vinculação, reciprocidade e retroalimentação entre fatores emocionais, cognitivos, orgânicos, comportamentais, sociais, histórico, cultural e espiritual (AGUIAR, 2014).
Devido a isto, o trabalho do Gestalt-terapeuta está baseado no aqui-agora, nos conteúdos e formas que vão se apresentando no contato, fomentando as condições de o sujeito olhar e se reconhecer naquilo que se apresenta agora, como uma forma de ajustar-se criativamente. Tal postura só é possível com a ideia de “figura-fundo”, sendo a figura aquilo que emerge da percepção e que faz sentido na situação vivenciada, emergindo do fundo de vivências, isto é, sua história, experiências, apontado como a totalidade do sujeito.
Com isso Perls, Hefferline e Goodman (1997), diz que é estruturando a experiência aqui e agora, que é possível refazer as relações dinâmicas da figura e fundo até que o contato se intensifique, a awareness se ilumine e o comportamento se energize, também assinalam que o processo terapêutico é treinar o ego, as diferentes identificações e alienações, até que se reviva a sensação de que “sou eu que estou pensando, percebendo, sentindo”, nessa altura o paciente pode assumir, por conta própria o controle.
Se pode assim identificar o termo contato como imprescindível na teoria da Gestalt terapia, pois Perls, Hefferline e Goodman (1997) salientam que quando algo é sentido na situação atual, o excitamento cresce em direção a solução mesmo que ainda desconhecida, de tal modo que definem como o achar e fazer da solução vindoura. Ela está presente na fronteira de contato, onde acontece a troca organismo/ambiente, e é diante desse processo de contatar que há o crescimento do organismo.
Revista IGT na Rede, v. 19, nº 37, 2022. p. 175 – 199. Disponível em http://www.igt.psc.br/ojs ISSN: 1807-2526
181
Um outro conceito que é fundamental é o próprio ajustamento criativo, advém desse processo de contato, pedra angular no processo terapêutico, pois para que o sujeito se autorregule de maneira saudável é preciso ajustando-se criativamente, é “qualidade” desse contato, ou seja, a forma como esse contato acontece (Perls, Hefferline, & Goodman, 1997).
Todo contato é um ajustamento criativo do organismo e do meio, atividade natural de todo ser humano. O processo terapêutico é a busca pelas inúmeras possibilidades de respostas criativas diante das situações diversas, pois esta é uma forma saudável de a pessoa manter o equilíbrio das mais diversas e adversas condições (SANTOS, 2016).
Visto que a experiência humana se dá na fronteira de contato, visualizar-se nessa fronteira em ação dá origem ao que chamamos em Gestalt-Terapia de Self, Belmino (2020) define como o âmago da compreensão acerca da natureza humana do pensamento gestáltico, e mais do que somente uma teoria, é um mapa que nos ajuda a ter uma melhor compreensão da experiência clínica em seu sentido ampliado. Ela contribui na tentativa de superar a dicotomia sujeito-objeto, eu-mundo ou qualquer outra dicotomia, pois essas divisões são posteriores à experiência.
O Self é compreendido como um processo ativo e mutável, conhecido como o sistema de contato, não é fixo, mas que sofre variações de acordo com a circunstância. Távora (2014) salienta que
“Para apreender sua forma e função em toda sutileza, é necessário um
posicionamento ao estilo da câmera que se move em busca de diversos
ângulos de uma mesma cena e se distancia e se aproxima em close-up
sucessivamente, delineando a compreensão de uma personagem que
vai ao mundo e volta para si quase de forma ininterrupta, revelando, a
cada intervalo, aspectos diferentes de si e do mundo.” (p. 39)
Desse modo, para que o self ocorra é preciso estar em contato com algo, sempre presente na fronteira. Para isso, Perls, Hefferline, Goodman (1997) parafraseiam Aristóteles, discorrendo que ao apertar o polegar sobre uma superfície, o self existe no polegar dolorido. Adiante, para melhor compreensão da temática, é necessário
Revista IGT na Rede, v. 19, nº 37, 2022. p. 175 – 199. Disponível em http://www.igt.psc.br/ojs ISSN: 1807-2526
182
analisar a própria estrutura do self, em que é dividida entre o ID, o Ego e a Personalidade.
A função ID, parte fundamental da pesquisa apresentada, pois na leitura do Self o autismo se apresenta como uma vulnerabilidade nessa função. Classificado por Perls, Hefferline e Goodman (1997) como a dimensão corporal, fundo de possibilidades, da qual somos passivos, se apresentando de forma dispersa e irracional e por isso, relacionam-se com as condições dos surgimentos das experiências. Entendida como o fundo de toda experiência, tem em si sua história retida e dão norte a maneira como o sujeito se encontra no mundo, Perls, Hefferline e Goodman (1997) traduzem como passivo, disperso e irracional, sendo a própria inconsciência do sujeito.
É considerada como o campo de excitação, pois mesmo diante da novidade das situações produz respostas, ainda que não tenha sido elaborada, tal como se já existisse uma intimidade com o mundo, e por isso, já seria possível pressupor modos de como responder ao que se apresenta (BELMINO, 2020). Ela é vista como os hábitos, afetos e gestalten inacabadas, e com tudo aquilo que tem a ver com esse atravessamento do entre: o mundo, o corpo e o outro. Apresentando-se como a impossibilidade de se desligar do contexto, sendo uma manifestação da ligação intrínseca do organismo com o mundo.
A outra estrutura, chamada de Ego é reconhecida como a ação, o corpo em ato, a deliberação, é aquilo que está consciente, na qual se identifica ou se aliena. Perls, Hefferline e Goodman (1997) definem a mesma como deliberada, ativa, sensorialmente alerta, motoricamente agressiva e consciente de si próprio. Essa função diz respeito àquilo que está objetivado no mundo, sendo as ações e os atos. É a que trata da singularidade dos sujeitos, pois é resultado da função ID e personalidade, ela é observada como potencialidade de toda uma história e cultura que caracterizam a experiência, se tornando base para ação, por isso seu caráter de diferenciação. Belmino (2020) em seus escritos relata que:
“São nos atos que enlaçamos os nossos hábitos construídos na
inseparabilidade entre nós, o mundo e o outro, e nossas construções
identitárias produzidas na relação com a sociedade e com a cultura. É o
ato que produz uma novidade (criatividade) perante o já dado
Revista IGT na Rede, v. 19, nº 37, 2022. p. 175 – 199. Disponível em http://www.igt.psc.br/ojs ISSN: 1807-2526
183
(ajustamento). Assim, a função ego é a capacidade do campo de se
identificar e alienar o que é produzido no campo. A função id e
personalidade são sempre fundos que permitem a emergência de uma
ação no campo” (p. 125)
Nessa perspectiva, é possível afirmar que a função Ego, é a que trata do corpo no mundo, Alvim (2011) explica que ela é exercida quando entra em contato com o diferente, que indica um sentido, direção ao futuro imediato, que me leva de um lugar ao outro. É apenas com awareness que a função ego exerce uma ação espontânea e criadora.
A partir desta perspectiva, a função Personalidade é a parte disponível, responsável pelas identificações, abarcando a parte verbal da experiência através do já conhecido sobre si mesmo. As palavras reconhecimento e definição estão sempre presentes quando se busca definir tal função. Vale lembrar que essas identificações passam pela esfera social, histórica e cultural, chegando à experiência individual, a parte ontológica. Belmino (2020) esclarece:
“Por isso, a função personalidade tem a ver com todos esses
significados que atribuímos a nós mesmos das nossas relações
identitárias, e por mais que saibamos que as identidades são sempre
compartilhadas, construídas no cerne da relação com a cultura e as
instituições que nos rodeiam (e, por isso, também, a função
personalidade é sempre intersubjetiva) nós reclamamos essas
identidades a nós mesmos, e nos identificamos com elas para produzir
um entendimento próprio.” (p. 122)
Sendo assim, a narrativa de quem se é com um sistema repleto de atitudes adotadas e reconhecidas pelo próprio sujeito, é a parte do self que diz respeito às nossas identidades, instituições e as maneiras como se integra às relações interpessoais.
Com isso, a partir de uma postura fenomenológica, se busca compreender como essa visão de homem pode fomentar uma análise da experiência do sujeito com autismo, observando suas especificidades e modos de ajustar-se criativamente. Para isso, também se faz necessário compreender a discussão em torno do que
seria o Transtorno do Espectro Autista (TEA) e como outros autores têm apontado para o assunto indo além dos manuais diagnósticos.
Revista IGT na Rede, v. 19, nº 37, 2022. p. 175 – 199. Disponível em http://www.igt.psc.br/ojs ISSN: 1807-2526
184
Transtorno do espectro autista
O Transtorno do Espectro Autista (TEA) está presente na quinta edição dos Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, DSM 5 (APA, 2013), classificado como um transtorno do neurodesenvolvimento. Predominantemente, as características primordiais do autismo são o prejuízo na comunicação, na interação social e comportamentos repetitivos, sem muitos significados, que muitos parecem ficar realizando sem uma finalidade muito clara (LOCATELLI, 2016).
Ao observar a história, em 1938, o psiquiatra infantil austro-americano Leo Kanner já tentava compreender o autismo e suas manifestações na qual até então era considerado enquanto uma psicose. Para ele, a desordem fundamental estava na incapacidade dessas crianças de se relacionarem de maneira comum com pessoas e situações desde o começo da vida, adiante, percebe também um traço em comum em todas as onze crianças que era a extrema solidão desde o começo de suas vidas, não respondendo aos estímulos externos direcionados a elas (CORTEZ, 2020). E desde então, a temática tem adentrado nos espaços de discussão da saúde mental e elaboração sobre o que seria o autismo e quais as suas causas, na qual o DSM busca objetivá-lo, mas a cada edição apresenta uma modificação. Locatelli (2016) explica de maneira breve:
“As primeiras classificações do autismo foram psicose e esquizofrenia. A
oitava revisão do CID incluía o autismo como esquizofrenia, sendo
unificada a categoria de psicose infantil na nona revisão. Atualmente, o
CID está na sua décima edição (CID – 10), incluindo o autismo como
Transtornos Globais do Desenvolvimento, havendo concordância com
os DSM III e o DSM III-R. No entanto, o DSM-IV incluía o autismo como
Transtorno integrante ao agrupamento de Transtornos Invasivos do
Desenvolvimento” (p. 207)
Valendo então ressaltar que, o autismo é de difícil definição, por variar em grau e intensidade. Ela pode ser determinada pelas condições em que se desenrola o desenvolvimento, incluindo as mudanças biológicas esperadas, os sistemas de relações sociais que envolvem a criança, as condições dos ambientes que circula, o nível cognitivo da criança, entre outros (CAMARGO, 2009).
Não obstante, desde o início das investigações com as análises de Leo Kanner, com os primeiros diagnósticos de autismo até o DSM V, existiu uma tentativa de
Revista IGT na Rede, v. 19, nº 37, 2022. p. 175 – 199. Disponível em http://www.igt.psc.br/ojs ISSN: 1807-2526
185
enquadrar e capturar de forma objetiva o sujeito, esquecendo que os aspectos subjetivos tendem a variar, não querendo dizer com isso que não se deva usar rótulos, pois do contrário, o autismo ainda teria permanecido sem diagnóstico e sem tratamento. O que se busca é analisar que os rótulos são limitados, pois o autismo é identificado pela observação e avaliação do comportamento. As avaliações e observações são subjetivas, e os comportamentos variam de pessoa para pessoa (GRANDIN, 2015).
Devido a isso, compreende-se o papel diagnóstico, mas esse não deve ser apresentado com um fim, visto que esse conjunto de sintomas na maior parte não contempla a singularidade da observação e escuta, pois os diagnósticos dificilmente alcançam as manifestações reais do humano (BRANDÃO, 2017). Mesmo que se tenha um olhar universal sobre a pessoa com autismo para facilitar a comunicação entre profissionais, não se deve descartar o olhar sobre a singularidade, pois é neste que abrem as possibilidades de intervenção.
Muller-Granzotto e Muller-Granzotto (2012), em seu escrito sobre psicose e sofrimento, separa uma parte do seu livro na qual vem retratar a diferença entre o autismo enquanto síndrome e enquanto ajustamento de isolamento, pois se podemos admitir que o autismo se parece com uma síndrome aparentemente irreversível, também devemos reconhecer sua produtividade em face às demandas sociais.
Ao que tudo indica, deparar-se com as tentativas de caracterização do autismo proposto pelo DSM e o levantamento de outros autores sobre o tema, abre margem para que a Gestalt-Terapia encontre em seus conceitos básicos modos de estar e intervir junto aos sujeitos que fazem ajustamento de busca, não focando na síndrome, mas sim naquilo que de criativo o autista produz na atualidade das situações ao qual está envolvido (MULLER-GRANZOTTO E MULLER GRANZOTTO, 2012).
O seguinte tópico busca caracterizar o autismo sob a ótica da Gestalt-terapia, em que a compreende pela teoria do Self. Como já dito anteriormente, diferentemente da literatura médica, ela tem em sua compreensão os ajustamentos de busca como
Revista IGT na Rede, v. 19, nº 37, 2022. p. 175 – 199. Disponível em http://www.igt.psc.br/ojs ISSN: 1807-2526
186
uma forma de experienciar o mundo, estando sempre em processo e nunca de maneira fixa e estagnada.
Autismo para Gestalt-terapia
Para Gestalt-terapia, o sujeito é compreendido dentro dos seus ajustamentos criativos, relacionando e integrando da melhor forma possível o organismo e o ambiente. Em função disso, compreende-se a psicose como uma forma de estar no mundo não de forma biologicista em que existem sintomas a serem curados tal qual desajustes a serem ajustados, mas através da teoria do self, visa a integração da experiência do sujeito e formas de lidar com as demandas que surgem em seu campo, pois o sujeito que faz ajustamentos psicótico ou de busca está sempre buscando responder a um apelo social, estando vulnerável em sua função afetiva. Quinhones (2019), contribui para o entendimento do ajustamento de busca ao relatar que:
“Orientada pela teoria organísmica e pela fenomenologia, a Gestalt
Terapia busca, a partir da teoria do self, superar a tese patologizante do
indivíduo em favor de um processo de autocriação, de busca de
ajustamentos criativos em situações com as quais não consegue lidar
por falta de repertório ou por excesso de demandas (expectativas) do
ambiente. Desta forma, a psicose deixa de ser caracterizada como uma
patologia desfigurante para receber uma compreensão mais positiva.”
(p. 194)
Para Perls, Hefferline e Goodman (1997) a psicose é vista como a aniquilação da concretude da experiência, ou seja, há uma vulnerabilidade ou perda da função id. Muller-Granzotto e Muller-Granzotto (2012), estabelece que isso tem a ver com a
nossa constituição de um fundo impessoal, que orienta a síntese dos nossos hábitos, a impossibilidade de se desligar do mundo. É justamente essa dimensão que se apresenta prejudicada quando se observa as psicoses.
Vale então salientar que os ajustamentos de busca, são vistos como experiências de campo com vulnerabilidade na função ID, e os autores Muller-Granzotto e Muller Granzotto (2012) para melhor elucidação, subdivide tal ajustamento em articulação de fundo, preenchimento de fundo e por fim, em ajustamentos de isolamento social, sendo este o que se trata do Transtorno do Espectro Autista.
Revista IGT na Rede, v. 19, nº 37, 2022. p. 175 – 199. Disponível em http://www.igt.psc.br/ojs ISSN: 1807-2526
187
Partindo do pressuposto que o self é compreendido pelas funções Id, Ego e Personalidade, e como já discutido anteriormente tem seu caráter mutável, além de variar de acordo com o contexto no qual se está inserido, não estando estagnado, mas suscetível a variações. Nas definições de Perls, Hefferline e Goodman (1997) o self é a força que forma a gestalt no campo, o processo de figura/fundo em situação de contato. Em outras palavras, é o que possibilita a compreensão das suas necessidades advindas do campo, necessidade essa elucidada pelo contato.
Dentro desse processo de contatar, as funções tornam-se essenciais para facilitar o lançar do indivíduo ao ambiente, no qual Carvalho e Costa (2010) explicitam que qualquer interrupção ou bloqueio nas etapas do contato, o comportamento irá denotar um desligamento de si e do mundo interrompendo o fluxo da awareness. Brandão (2017) salienta que apesar das funções distintas no processo de contatar, elas são facetas de um único processo que é o reconhecimento e implicação de si, inserido indissociavelmente em um contexto.
Diante disso, busca-se entender o porquê de os autores apontarem para o autismo enquanto um comprometimento da função ID. De modo geral, determinada função é apontada justamente porque os ajustamentos de isolamento segundo Brandão (2017) apresentam aspectos ligados a possibilidade de reconhecer o outro, mas não surgir enquanto necessidade, além das condutas estereotipadas atreladas às sensações corporais, comprometimento tanto na relação social quanto na comunicação, as condutas motoras e uma barreira na questão proprioceptiva e perceptiva das situações. Assim, no autismo a perturbação da função id ocorre a partir de uma falta perceptiva dos excitamentos que provém do meio, de forma que a pessoa passa a não ser sensível a eles e a não responder da forma "adequada" aos mesmos (SOARES, 2018).
Quanto às impossibilidades de mudanças, Soares (2018) explica que essas fixações excessivas, a coisas, objetos, partes de si, ideias, pessoas, animais, e assim por diante, é a busca por uma forma de se ajustar frente ao que é ameaçador para ele, pois se fixar a algo acaba por equilibrá-lo em meio às mudanças que são vistas como perturbadoras.
Revista IGT na Rede, v. 19, nº 37, 2022. p. 175 – 199. Disponível em http://www.igt.psc.br/ojs ISSN: 1807-2526
188
Alves (2010) salienta que ao trabalhar com pessoas com autismo, deve-se ter em mente a sua dificuldade em simbolizar e relacionar-se com o mundo à sua volta, tal como se fosse uma fuga das demandas por afeto. Com isso, os autores Muller Granzotto e Muller-Granzotto (2012), sugerem diferenciar sentimento como comportamentos claramente definidos no âmbito de cada cultura, de afetos que seriam inexplicáveis dos objetos, nos sentimentos, nos pensamentos, eles são segundo a terminologia da teoria do self, o indício de que algum hábito está se repetindo.
Nessa perspectiva, é apontado novamente a função Id, por ser o não compreendido e o fundo da experiência vivenciada. É possível perceber sentimentos como a raiva, tristeza, alegria, nojo etc. mas não parece haver afeto: não há curiosidade, interesse ou expectativas. É nessa mesma linha que se torna possível explicar o porquê da
utilização do termo ajustamento de isolamento social, pois em face da insatisfação ou expectativa exagerada, as quais nada são que demandas por excitamento, os autistas frequentemente se comportam como se estivesse se defendendo (MULLER GRANZOTTO E MULLER-GRANZOTTO, 2012).
Desse modo, o autismo utiliza o isolamento como defesa, sem muitos indícios de interação social. Muller-Granzotto e Muller-Granzotto (2012), continuam a explicar que todas essas formas de estar no mundo presente nos sujeitos que vivem experiências autísticas, perpassam a esfera social a qual estão inseridos, explicando assim seus comportamentos com embotamento afetivo, a agressividade e seu mutismo, pois as demandas sociais são extensivas e ultrapassam o limite da inteligência, chegando aos excitamentos.
Os processos de contatar, mesmo com sua vulnerabilidade apontada na função ID, só se tornam possíveis devido aos ajustamentos criativos, entendido como adaptações de arranjos harmônicos de forma criativa, inovadora e original; utilizando-se do que está ao seu alcance ao qual necessita transformar na mesma proporção em que é transformado (PERUZZO, 2011).
Há uma tentativa de intervir junto a esses sujeitos, com o objetivo de atenuar os impactos psicossociais. Para isso, o acompanhamento terapêutico é apontado como
Revista IGT na Rede, v. 19, nº 37, 2022. p. 175 – 199. Disponível em http://www.igt.psc.br/ojs ISSN: 1807-2526
189
ferramenta, devido o suporte e mediação com o mundo, ao estar ao lado da pessoa em dificuldades psicossociais com a intenção de se montar um guia terapêutico que fomente a circulação social, com ações sustentadas numa relação de vizinhança do acompanhante com o sujeito e suas limitações, dentro do seu contexto histórico
(PITÍA, 2009).
Acompanhamento Terapêutico
O acompanhamento terapêutico nasceu diante da luta da reforma anti psiquiátrica e da ideia do homem louco como mal, movimento que ocorre dentro da psiquiatria e colocava em questão a condição do indivíduo como um sujeito que fora privado de direitos por ser doente mental. O trabalho do AT, no entanto, é o encontro com o sofrimento do outro com os esforços de minorá-los sendo uma prática social de atendimento terapêutico (CHAUÍ, 2012).
No entanto, para melhor compreensão do nascimento do Acompanhante Terapêutico, se faz necessário alguns recortes históricos e sociais, valendo salientar que a proposta é contextualizar, mas não se deter exclusivamente. Inicialmente, com os estudos de Michael Foucault é trazido à tona a questão da loucura quando mesmo busca descrever como em épocas diferentes a sociedade lidou com tal fenômeno, como no século XVII com o internamento, em que os inválidos eram postos à margem da comunidade, tal qual os mendigos, idosos, desempregados, mulheres solteiras, ou seja, todos aqueles que não faziam parte da produção capitalista, e posteriormente no século XIX passa a ser objeto da psicologia, nomeando os mesmos como doente mental (CHAUÍ, 2012).
De modo geral, o doente mental aparece como uma espécie de detrito social a ser escondido. É submetido a um processo de exclusão, segregação e encarcerado em instituições fechadas. Despojado da condição de sujeito, é desumanizado e tratado como coisa (CHAUÍ, 2010). A loucura só vem a ser objeto de intervenção por parte do Estado no início do século XIX, com a chegada da Família Real ao Brasil, depois de ter sido socialmente ignorada por quase trezentos anos (DA FONTE, 2013).
Revista IGT na Rede, v. 19, nº 37, 2022. p. 175 – 199. Disponível em http://www.igt.psc.br/ojs ISSN: 1807-2526
190
O Brasil acompanha as mudanças que vinham acontecendo principalmente na Itália com a desinstitucionalização, e não fica de fora do processo. Por exemplo, os fatores históricos de extrema importância foram as conferências que aconteceram em 1987, I Conferência Nacional de Saúde Mental, na qual dava ênfase a priorização dos serviços extra-hospitalar e multiprofissional na assistência psiquiátrica, sendo essa a alternativa para a hospitalização.
Em seguida, no mesmo ano tem o II Congresso Nacional do Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental, e aqui se faz presente e eficaz a questão da luta antimanicomial. Adiante, a constituição de 1988 com a construção do SUS (Sistema Único de Saúde) faz com que as críticas ao modelo hospitalar psiquiátrico se tornem cada vez maiores. Sendo assim, somente em 2001, tem-se a legislação Lei n° 10.216/2001 chamada de Lei da Reforma Psiquiátrica, pautado na garantia dos direitos humanos e atendimento às necessidades terapêuticas, possibilitando a inovação de métodos e procedimentos no tratamento psiquiátrico e da conceituação da percepção social da pessoa portadora de transtorno mental.
Baságlia (2001, apud Chauí, 2012) traz que somente fora da instituição asilar é que uma relação terapêutica de ajuda pode concretizar-se. Diante disso, é notório perceber um campo fértil para o trabalho enquanto Acompanhante Terapêutico, pois com todas essas mudanças históricas e sociais, além dos serviços de saúde prestado, é na Argentina que se tem início o trabalho do AT, no qual anteriormente era conhecido como “amigo qualificado”, conforme distanciava-se cada vez mais das instituições. Dado como uma alternativa à desinstitucionalização, pois para além desse campo geográfico, também se tornou necessário no campo afetivo, por superar a lógica tecnicista em que a relação estava arraigada ao conhecimento técnico oferecido pelos médicos, enfermeiros e técnicos (CHAUÍ, 2012).
No entanto, inicialmente, o amigo qualificado era de caráter voluntário na tentativa de estar alinhado às finalidades da política da psiquiatria democratizante, em que todos os indivíduos participavam dessa ação política de reinserção social. Esses voluntários auxiliaram os pacientes nas tarefas cotidianas, a partir de um caráter social, construído e relacional das doenças mentais, Araújo (2005) explique que tal
Revista IGT na Rede, v. 19, nº 37, 2022. p. 175 – 199. Disponível em http://www.igt.psc.br/ojs ISSN: 1807-2526
191
termo se devia à ausência de saber específico sobre a loucura, estando apenas em proximidade e intimidade com o paciente.
No entanto, o mesmo autor continua a explicar que a mudança do amigo qualificado para Acompanhante terapêutico foi a partir de um combate a favor de seu estatuto clínico que os "amigos qualificados", visando uma equiparação com a clínica psicanalítica, partiram em busca de um nome que não sugerisse tanta proximidade quanto o amigo (ARAÚJO, 2005).
Com isso, vale questionar o que é e o que faz um acompanhante terapêutico. Visto como uma prática na área da saúde, o AT tem seu trabalho fora da clínica e adentra aos espaços públicos com intuito de promover saúde e buscar amenizar o sofrimento psíquico daquele ao qual acompanha. Segundo Silva (2006)
“A prática do AT, acaba tomando a rua como "dispositivo clínico": nos
diferentes percursos pela cidade, muito mais do que se orientar ou
ambientar-se, trata-se de usar o próprio tecido urbano como espaço de
novas produções de sentido, fazendo com que as próprias intervenções
desse espaço possam adquirir uma função terapêutica. Podemos dizer
que os acompanhamentos terapêuticos se constituíram a partir dessa
vontade de acompanhar o sujeito, com circulação ainda restrita, pelo
tecido urbano, ou seja, o agente buscava circular com o acompanhado
que estava isolado do convívio social e submetido a uma rede de
saberes, principalmente da área da saúde mental.” (p. 219)
Este trabalho baseia-se na chamada reabilitação psicossocial, é o acompanhamento que incentiva o indivíduo a buscar sua autonomia com criação de estratégias junto aos acompanhados, estando presentes em situações corriqueiras próprias ao cotidiano urbano, tais como idas a agências bancárias, supermercados, consultas médicas, dentre inúmeras outras possibilidades, pois é pensar a cidade como corpo coletivo que se agrega ao par acompanhante-acompanhado, formando uma tríade a partir da qual uma terapêutica se desenvolve (GODINHO, 2019).
O AT transformou-se em um aliado importante no processo de manutenção de vínculos sociais e na participação ativa da qualidade de vida do indivíduo, com objetivo central de colocar as pessoas acompanhadas em contato direto com a vida prática e com o meio social (AVILLA, 2019).
Revista IGT na Rede, v. 19, nº 37, 2022. p. 175 – 199. Disponível em http://www.igt.psc.br/ojs ISSN: 1807-2526
192
As intervenções são sempre de maneira dialógica com o acompanhado, com a própria família e demais atores que estiverem inseridos no contexto, para que então, se crie uma rede de apoio na qual incentivem o sujeito a criatividade, autonomia, cuidados pessoais etc., pois como já mencionado anteriormente, é o encontro com o sofrimento do outro com os esforços de minorá-los (CHAUÍ, 2012).
Atendendo a ideia de Perls de que o exercício da liberdade é uma conquista do homem na evolução holística. É por meio da liberdade que o homem se liberta da cadeia das determinações causais e pode mudar o rumo da sua vida de modo consciente e auto-regulativo (LIMA, 2008). De tal modo que tanto a Gestalt-terapia quanto o acompanhamento terapêutico, têm em suas bases teóricas o compromisso com a liberdade do sujeito, seja pela perspectiva do homem enquanto livre e responsável pelas suas escolhas, como também por aquela sustentada na reforma psiquiátrica ao propor a retirada do sujeito do campo estrito da psiquiatria, lugar privilegiado de tratamento, para também construir uma nova relação com a sociedade (AMARANTE, 2009).
Acompanhamento terapêutico nos ajustamentos autistas a partir da leitura Gestáltica
As formas de se estabelecer intervenções são diversas, pois variam de acordo com o que se apresenta no campo, e para isso a Gestalt-terapia argumenta que para além da clínica com sua escuta ética das produções psicóticas, o acompanhamento terapêutico é a atuação política do clínico em prol de um espaço social onde se encaixe o sujeito de formações psicóticas (FERREIRA, 2015).
Não há busca de objetivos, metas, possibilidades de cura do sujeito, mas sim de reconhecimento de suas potencialidades e possibilidades, articulando junto com o meio social para que esse o respeite em seu lugar enquanto indivíduo, sendo este trabalho reconhecido em sua dimensão antropológica. Barros (2014) fala sobre a atuação e intervenção:
“Percebe-se que no trabalho com autismo aquilo que se aprende na
faculdade, desde o primeiro dia, talvez, seja executado da forma mais
intensa e genuína. Ter calma, segurar a ansiedade por respostas,
esperar o tempo do cliente, acompanhá-lo sem falar nada, acolher, e
Revista IGT na Rede, v. 19, nº 37, 2022. p. 175 – 199. Disponível em http://www.igt.psc.br/ojs ISSN: 1807-2526
193
vivenciar o encontro terapêutico das mais diversas maneiras possíveis –
essas sim não se encontram nos livros, nem nas aulas, nem nas
pesquisas: ela simplesmente vai acontecer.” (p. 231)
As intervenções são de tal maneira que possam restituir ao sujeito seu direito de produzir seus próprios modos de ajustamento, Belmino (2020) ressalta que elas passam por um cuidado ético, político e antropológico, devido a escuta cuidadosa e atenta para que as experiências sejam reconhecidas e colocadas em seu lugar de legitimidade. Como o trabalho ético que busca acolher sem pretensão de julgar, interpretar ou frustrar.
O autor continua relatando que o trabalho ético unicamente não é suficiente, sendo necessário a aproximação com trabalho político, estando pautado no social, ou seja, a escuta e o acolhimento não alteram a forma como socialmente a psicose é tratada e estigmatizada, por isso é preciso orientações e intervenções com os demandantes, e é justamente neste trabalho político que nasce a figura do AT com a função de incluir o indivíduo naquilo que é possível para ele em suas relações (BELMINO, 2020).
Por fim, o trabalho antropológico visa advogar a inclusão, pois o sujeito que está se ajustando tem dificuldades em lidar com demandas ambíguas e os demandantes de reconhecer suas formas violentas de relação com esses sujeitos. O AT, precisa estar atento a essas formas de relação ajudando o sujeito a reconhecer e se proteger, sendo um trabalho antropológico de inserir a pessoa em seu contexto de vida cotidiana e que ela possa gozar, dentro de seus limites, da inclusão na sociedade e na reconfiguração de suas contratualidades sociais (BELMINO, 2020).
Os autores Muller- Granzotto e Muller- Granzotto (2012), contribuem nas formas de intervenção quando enfatizam também a articulação das redes de apoio, em favor da suspensão das demandas por excitamento. Eles acentuam a importância de um
trabalho ao qual busca auxiliar os familiares, amigos e instituições de ensino, nomeando como “guardiões dos ajustamentos de isolamento”, propondo que os acompanhantes sempre estejam atentos aos isolamentos produzidos no campo”. Além disso, Soares (2018) traz que
Revista IGT na Rede, v. 19, nº 37, 2022. p. 175 – 199. Disponível em http://www.igt.psc.br/ojs ISSN: 1807-2526
194
“é necessário proporcionar experiências que ampliem o caminho para o
contato pleno, pois ele envolve a habilidade de estar completamente
presente em uma situação particular, com todos os aspectos do
organismo que as funções do contato envolvem, como: tocar, enxergar e
ver, ouvir e escutar, provar, sentir, falar, ouvir, gesticular, linguagem, e
até mesmo o mover-se no ambiente, para usá-los quando necessário.”
(p. 84)
Dessa forma o presente trabalho busca garantir uma nova forma de pensar a atuação do Gestalt-terapeuta, como ferramenta em que possibilite a manutenção da inclusão, trabalho este que esteja apto para interlocução com outros sujeitos na tentativa de construções de espaços coletivos. Não delimitando objetivos ou metas para o acompanhado, tal qual uma educação bancária, mas encontrando no próprio indivíduo e ambiente, possibilidades de existir diante de suas limitações e potencialidades, em um movimento de consciência.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante dos estudos sobre o acompanhamento terapêutico e o ajustamento de isolamento social, buscou-se uma melhor compreensão sobre como a Gestalt terapia pode abarcar a experiência do sujeito no espectro autista, ampliando sua prática clínica ao estar junto aos sujeitos em diversos espaços, na tentativa de fomentar a inclusão social.
Desse modo, utilizou-se a Gestalt-terapia com fins teórico-metodológico, por ter em suas bases filosóficas o humanismo, existencialismo e fenomenologia, em que aponta para o sujeito enquanto um ser livre e responsável pelas suas escolhas. Assim, foi pensado como ela poderia ser uma ponte para compreensão da vivência do sujeito com ajustamentos de isolamento social, afirmando seu lugar no mundo diante das possibilidades existentes.
Para isso, foi utilizada a teoria do Self, na qual Muller-Granzotto e Muller Granzotto (2004) caracteriza como processo que constitui a reedição criativa das trocas energéticas entre materialidade física e o meio – é um trabalho fenomenológico, pois trata da descrição do que há de essencial na experiência.
Revista IGT na Rede, v. 19, nº 37, 2022. p. 175 – 199. Disponível em http://www.igt.psc.br/ojs ISSN: 1807-2526
195
Devido a isto, foi debatido sobre o espectro autismo, acentuando que os esforços médicos para definir e enquadrar nos diagnósticos, por vezes se torna limitante, já que se trata de uma pluralidade de experiências na qual se diferenciam em sua singularidade. Alguns autores têm escrito sobre o fato de o espectro autista apresentar principalmente déficits na interação social, comunicação e comportamentos repetitivos e restritos. E pensando para além das cristalizações decorrentes dos diagnósticos, foi utilizado o acompanhamento terapêutico como ferramenta que possibilitasse o acolhimento em espaços diversos para além do âmbito clínico, fomentando então a inclusão.
Para isso, a Gestalt-terapia afirma que o acompanhamento terapêutico se torna um trabalho ético, político e antropológico, pois não visa objetivos nem a cura, mas sim aguçar a inclusão articulando com o meio social, afirmando seu próprio espaço de legitimidade. Além disso, apontar e reconhecer junto ao sujeito acompanhado quais demandas tem se tornado excessivas e a partir disso como se proteger em prol da autopreservação, amenizando os impactos psíquicos.
Destarte, se pode perceber que todo trabalho tem estado junto a luta antimanicomial, pois busca apontar para o ajustamento de isolamento social como forma de estar no mundo, experienciando e dando legitimidade ao seu lugar de indivíduo, superando a lógica tradicional, dos tratamentos em espaços privados, para acompanhar em espaços públicos com fins terapêuticos.
Revista IGT na Rede, v. 19, nº 37, 2022. p. 175 – 199. Disponível em http://www.igt.psc.br/ojs ISSN: 1807-2526
196
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AGUIAR, Luciana. Gestalt-terapia com crianças: teoria e prática. São Paulo: Summus Editorial, 2014.
ALVES, Márcia de Mesquita Cardoso; LISBOA, D. de O.; LISBOA, D. de O. Autismo e inclusão escolar. IV Colóquio Internacional Educação e Contemporaneidade. Laranjeiras-SE, 2010. Disponível em: http://educonse.com.br/2010/eixo_11/e11- 25a.pdf
ALVIM, Mônica Botelho. O lugar do corpo em Gestalt-Terapia: dialogando com Merleau-Ponty. Revista IGT na Rede, v. 8, n. 15, p. 227-237, 2011. Disponível em: 'http://igt.psc.br/ojs3/index.php/IGTnaRede/article/view/312
AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION - APA. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais: DSM-5. Porto Alegre: Artmed, 2014.
ARAÚJO, Fabio. Do amigo qualificado à política da amizade. Estilos da clínica, v. 10, n. 19, p. 84-105, 2005.
BARROS, Marina Nogueira de. O psicoterapeuta invisível: reflexões sobre a prática Gestáltica com ajustamentos autistas. IGT na Rede, v. 11, n. 20, p. 193- 241, 2014. Disponível em:
http://igt.psc.br/ojs3/index.php/IGTnaRede/article/view/395
BELMINO, Marcus Cezar. Gestalt-terapia e experiência de campo: dos fundamentos à prática clínica. Paco Editorial. São Paulo. 2020.
BRANDÃO, Cintia Lavratti. Transtorno do Espectro Autista: Um mundo visto através do caleidoscópio. In Frazão, L. M., & Fukumitsu, K. O. (Orgs.), Quadros clínicos disfuncionais e Gestalt-terapia (pp. 141-154). São Paulo: Summus. 2017
CHAUÍ-BERLINCK, Luciana. O acompanhamento terapêutico e a formação do psicólogo: por uma saúde humanizada. Arquivos Brasileiros de Psicologia, v. 62, n. 1, p. 90-96, 2010. Disponivel em:
https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=229016557010
CHAUÍ-BERLINK, Luciana. Novos andarilhos do bem: caminhos do Acompanhamento Terapêutico. Autêntica Editora. Belo Horizonte, 2012.
CÔRTES, Maria do Socorro Mendes; DE ALBUQUERQUE, Alessandra Rocha. Contribuições para o diagnóstico do Transtorno do Espectro Autista: de Kanner ao DSM-V. Revista JRG de Estudos Acadêmicos, v. 3, n. 7, p. 864-880, 2020. Disponível em: http://www.revistajrg.com/index.php/jrg/article/view/248
DA FONTE, Eliane Maria Monteiro. Da institucionalização da loucura à reforma psiquiátrica: as sete vidas da agenda pública em saúde mental no Brasil. Estudos de Sociologia, v. 1, n. 18, 2013. Disponível em:
https://periodicos.ufpe.br/revistas/revsocio/article/view%20/235235/28258
Revista IGT na Rede, v. 19, nº 37, 2022. p. 175 – 199. Disponível em http://www.igt.psc.br/ojs ISSN: 1807-2526
197
DA SILVA, Marcela Lombello Contrera; DE ALENCAR, Silvia Oliveira. Gestalt terapia e corpo: uma revisão literária. Gestalt therapy and body: a literature review. IGT na Rede ISSN 1807-2526, v. 8, n. 15, 2011. Disponível em: http://igt.psc.br/ojs3/index.php/IGTnaRede/article/view/291
DE SOUSA, Angélica Silva; DE OLIVEIRA, Guilherme Saramago; ALVES, Laís Hilário. A pesquisa bibliográfica: princípios e fundamentos. Cadernos da FUCAMP, v. 20, n. 43, 2021. Disponível em:
https://revistas.fucamp.edu.br/index.php/cadernos/article/view/2336.
FERREIRA, Rodrigo. Interlocuções para a inclusão psicossocial: possibilidades do acompanhamento terapêutico na abordagem gestáltica. In: BELMINO, Marcus Cézar. Gestalt Terapia e atenção psicossocial. Editora Premius. Fortaleza, 2015.
FREITAS, Julia Rezende Chaves Bittencourt de. A relação terapeuta-cliente na abordagem gestáltica. IGT na Rede, v. 13, n. 24, p. 85-104, 2016. Disponível em:http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1807- 25262016000100006
GODINHO, Danilo Marques; PEIXOTO, Carlos Augusto. Clínica em movimento: a cidade como cenário do acompanhamento terapêutico. Fractal: Revista de Psicologia, v. 31, p. 320-327, 2019. Disponível em:
https://www.scielo.br/j/fractal/a/YJDXGzqPqvwtqDvtcfDDBjv/abstract/?lang=pt
GRANDIN, Temple. O cérebro autista: pensando através do espectro. Editora Record, 2015.
GRANZOTTO, Rosane Lorena; GRANZOTTO, Marcos José Müller. Self e temporalidade. IGT na Rede ISSN 1807-2526, v. 1, n. 1, 2004. Disponível em: http://igt.psc.br/ojs3/index.php/IGTnaRede/article/view/22
LIMA, Patrícia Valle de Albuquerque. O holismo em Jan Smuts e a Gestalt terapia. Revista da Abordagem Gestáltica: Phenomenological Studies, v. 14, n. 1, p. 3-8, 2008. Disponível em:https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=357735510002
LOCATELLI, Paula Borges; SANTOS, Mariana Fernandes Ramos. Autismo: propostas de intervenção. Revista Transformar, v. 8, n. 8, p. 203-220, 2016. Disponível em:
http://www.fsj.edu.br/transformar/index.php/transformar/article/view/63
MARANTE, Paulo.; RANGEL, Marina. A liberdade é terapêutica: reinventando vidas na reforma psiquiátrica. Revista Eletrônica de Comunicação, Informação e Inovação em Saúde, v. 3, n. 4, 2009. Disponível em:
https://brapci.inf.br/index.php/res/v/133042
MULLER-GRANZOTTO, Marcos José; MULLER-GRANZOTTO, Rosane Lorena. Psicose e sofrimento. Summus Editorial. São Paulo. 2012.
Revista IGT na Rede, v. 19, nº 37, 2022. p. 175 – 199. Disponível em http://www.igt.psc.br/ojs ISSN: 1807-2526
198
PERLS, Frederick. Ego, fome e agressão. Uma revisão da teoria e do método de Freud. Editora Summus. São Paulo. 2002.
PERLS, Fritz., HEFFERLINE, Ralph., GOODMAN, Paul. Gestalt-Terapia. (F. R. Ribeiro, Trad.). São Paulo: Summus. 1997.
PERUZZO, Gisele. Os ajustamentos criativos no desenvolvimento infantil: uma visão gestáltica. Creative adjustments in child development: a Gestalt review. IGT na Rede ISSN 1807-2526, v. 8, n. 15, 2011.
PITIÁ, Ana Celeste de Araújo; FUREGATO, Antonia Regina Ferreira. O Acompanhamento Terapêutico (AT): dispositivo de atenção psicossocial em saúde mental. Interface-Comunicação, Saúde, Educação, v. 13, p. 67-77, 2009. Disponível em:
https://www.scielo.br/j/icse/a/TKCKCngHq7mH8qs5K7SGbts/abstract/?lang=pt
QUINHONES, Dionatans Godoy; DE VARGAS QUINHONES, Paola. Gestalt-terapia e a clínica dos ajustamentos psicóticos. IGT na Rede ISSN 1807-2526, v. 15, n. 29, 2018. Disponível em: http://igt.psc.br/ojs3/index.php/IGTnaRede/article/view/541
RIBEIRO, Jorge Ponciano. O ciclo do contato. São Paulo: Summus, 1997.
SANTOS, Bruna Taynara César. LIMA, Lilian. MOURA, Eliane. Ajustamento criativo no desenvolvimento do indivíduo numa visão gestáltica. Revista de trabalhos acadêmicos-universo-goiânia, n. 3, 2016. Disponível em: http://revista.universo.edu.br/index.php?journal=3GOIANIA4&page=article&op=view &path%5B%5D=3502
SANTOS, Luana Camila Fiúza. A modernização do manicômio: entre a reforma scantimanicomial (lei n. 10.216/2001) e a realidade do hospital de custódia e tratamento psiquiátrico da Bahia. Ciências Sociais. Universidade Católica do Salvador. 2022. Disponível em: http://ri.ucsal.br:8080/jspui/handle/prefix/4839
SERENO, Deborah. Acompanhamento terapêutico e educação inclusiva. Psychê, v. 10, n. 18, p. 167-179, 2006. Disponível em:
https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=30701816
SILVA, Alex Sandro Tavares da; SILVA, Rosane Neves da. A emergência do acompanhamento terapêutico e as políticas de saúde mental. Psicologia: Ciência e profissão, v. 26, p. 210-221, 2006. Disponível em:
https://www.scielo.br/j/pcp/a/PMmcQxv84J7gQnW5KBFYsmM/abstract/?lang=pt
SOARES, Marcela Neves; FERREIRA, Wanderlea Nazaré Bandeira. O funcionamento autista sob a ótica da clínica gestáltica. Revista do NUFEN, v. 10, n. 2, p. 75-90, 2018. Disponivel em:
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2175- 25912018000200006
Revista IGT na Rede, v. 19, nº 37, 2022. p. 175 – 199. Disponível em http://www.igt.psc.br/ojs ISSN: 1807-2526
199
TÁVORA, Claudia Baptista. Self e suas funções. FRAZÃO, Lilian Meyer. Gestalt terapia: conceitos fundamentais. Summus Editorial. São Paulo, 2014. (p. 38-49).
Endereço para correspondência:
Marcus Cézar de Borba Belmino
Email: marcuscezar@gmail.com
Antônio Francisco de Lima Neto
Email: antonio.lima071099@gmail.com
Recebido em: 17/04/2022
Aprovado em: 22/04/2023
Revista IGT na Rede, v. 19, nº 37, 2022. p. 175 – 199. Disponível em http://www.igt.psc.br/ojs ISSN: 1807-2526