ARTIGO

Entre desenhos e sessões de terapia, a experiência de um Gestalt-terapeuta desenhista

Between drawings and therapy sessions, the experience of a designer Gestalt-therapist

Dácio Pinheiro Carvalho Filho Georges Boris

RESUMO

A Gestalt-terapia é uma abordagem de psicoterapia que enfatiza a experiência e o foco na situação concreta como elementos norteadores para o processo.

Outro aspecto de destaque na abordagem é a sua proximidade com o campo da arte devido ao seu caráter espontâneo e sensível. Deste modo, o presente estudo se propõe a estudar a relação da arte com a Gestalt-terapia, explorando a experiência de um Gestalt-terapeuta que também tenha proximidade com o campo da arte. A partir do estudo pudemos observar diferentes formas nas quais a Gestalt-terapia encontra proximidade com a arte.

Palavras-chave: Gestalt-terapia, Arte, Psicoterapia

ABSTRACT

Gestalt therapy is an approach of psychotherapy that emphasizes experience and a focus on the concrete situation as guiding elements for the process.

Another aspect of the approach is its proximity to the field of art due to its spontaneous and sensitive character. In this way, the present article proposes to study the relationship between art and Gestalt-therapy, exploring the experience of a Gestalt-therapist who is also close to the field of art. From the study, we were able to observe different ways in which Gestalt-therapy finds proximity to art.

Keywords: Gestalt-therapy, Art, Psychotherapy.

Introdução

A Gestalt-terapia é uma abordagem de psicoterapia que parte de um ponto de vista fenomenológico, como efeito, afasta-se de uma visão objetiva e pretensamente neutra da realidade passando a pensar a consciência como elemento inseparável do corpo e do mundo. Sob esta ótica, um olhar sobre a totalidade não estaria direcionado apenas ao paciente, mas também ao modo como o psicoterapeuta se percebe neste encontro. Logo, esta compreensão de psicoterapia adquire um caráter singular onde a relação terapêutica costuma ser associada à arte por demandar um olhar sensível e espontâneo do psicoterapeuta (CARUSO, 2019).

Além desta comparação à arte pelo caráter espontâneo e sensível conjecturamos que a Gestalt-terapia seja uma abordagem construída não apenas a partir das correntes teóricas devidamente referenciadas e reconhecidas como suas bases, mas também sob a influências artísticas de seus principais fundadores como o contato de Fritz Perls com o teatro expressionista, de Laura Perls com a música e a dança moderna e Paul Goodman com a literatura. Tais experiências com a arte acentuaram à atenção que a Gestalt-terapia dedica à totalidade da forma corporal que se apresenta estando sensível a musicalidade da voz e movimentos corporais. Destarte, a influência da arte na Gestalt-terapia influenciou uma orientação estética para a abordagem, colocando a intuição e a sensibilidade não como fontes de erro e engano, mas como elementos legítimos de orientação (ALVIM, 2007).

Mais do que analogias e metáforas, os fundadores da Gestalt-terapia tiveram na arte tanto uma orientação para a prática da psicoterapia quanto a mensuração de saúde e doença. Arte e psicoterapia são atividades alicerçadas na capacidade humana de formar e transformar, ambas canalizam a experiência humana em uma atividade com contornos distintos da vida cotidiana distinguindo-se pelo fato de a arte resultar na criação de um objeto formal enquanto a psicoterapia concentra-se na recriação de si. Ambas têm a capacidade de trazer algo novo para o primeiro plano, uma grande obra de arte parece sempre ser desafiante pelas várias perspectivas possíveis. De modo aproximado, a psicoterapia amplia a perspectiva sobre aspectos emocionais.

Ambas associam experiências passadas com o momento presente fomentando novas possibilidades para velhos hábitos e tradições (MILLER, 2011).

A Gestalt-terapia não foi a primeira escola de psicoterapia a lidar com a questão da arte, a psicanálise já havia se aproximado das artes interpretando obras a partir da ótica de conflitos pulsionais. A arte já era tomada enquanto recurso terapêutico onde sugestivamente se propõe a fazer o paciente entrar em contato com seus afetos, intensificando sua expressão. Entretanto, de uma maneira muito específica, a Gestalt-terapia se interessou por aspectos estéticos sensibilizando-se a características da expressividade exaladas na relação terapêutica. Por conseguinte, mais do que entrar em contato com os próprios afetos, que não seriam fins em si mesmos, procura ampliar a percepção sobre o modo como entra em contato com a situação concreta, como se experimenta e faz contato com outrem (MILLER, 2011).

Ainda no período em que se identificava como psicanalista, Laura Perls atuou como psicoterapeuta por 13 anos, durante o período em que esteve refugiada na África do Sul, em decorrência da perseguição nazista. Distante de escolas de psicanálise o modo como vinha repensando a psicanálise junto a Fritz Perls resultaria na criação da Gestalt-terapia. As propostas de reforma da psicanálise procuravam estabelecer um contato face a face entre o analista e o analisando, uma maior ênfase ao momento presente, especialmente no que se refere à corporeidade, chamando atenção aos tensionamentos musculares, priorizando o que pode ser visto de imediato, fazendo o analisando identificar suas resistências e com isso trazendo impasses e conflitos para o primeiro plano.

Sob esta ótica, a atenção não só ao conteúdo verbal, mas também ao corpo exigiria do terapeuta certa sensibilidade à expressividade corporal, analogicamente à criação artística, a psicoterapia seria o exercício de reorganizar diferentes aspectos em um novo todo. Destarte, estes são elementos que fazem a figura de um bom terapeuta ser comparada à figura de um artista (PERLS, 1992/2012).

Considerando estas aproximações que a arte e a Gestalt-terapia estabelecem nos propomos a explorar esta relação, a partir da experiência de um Gestalt- terapeuta que tenha proximidade com o campo artístico.

Metodologia

Considerando tais elementos que aproximam a Gestalt-terapia ao campo da arte como o olhar sobre a totalidade, aspectos semelhantes entre a psicoterapia e o fazer artístico e a influência das experiências artísticas na construção da abordagem, nos propomos a explorar a interface entre a arte e a Gestalt-terapia, a partir da compreensão da experiência de um Gestalt- terapeuta que possui uma proximidade com experiências artísticas.

Deste modo, estamos explorando a singularidade da experiência e os significados que lhe são atribuídos. Apesar de estarmos pesquisando a partir de um único sujeito este não deixa de ser representativo uma vez que traz consigo elementos frutos da influência de outros membros de seu contexto, cada individualidade é ao mesmo tempo uma síntese de um grupo maior não na ordem de generalidades ou de uma representação estatisticamente fidedigna, mas sim da profundidade e particularidades do fenômeno em questão (MINAYO, 2017).

Para tanto, frente a necessidade de um caminho metodológico que acesse a experiência humana em toda sua complexidade lançamos mão de uma entrevista fenomenológica que visa explorar o objeto despindo-se de preconcepções para que ele mesmo, o fenômeno, se manifeste. Deste modo, a entrevista fenomenológica favorece uma expressão espontânea visando acessar as experiências do sujeito podendo ser realizada com uma única pergunta norteadora e os outros questionamentos serem feitos com base no próprio relato do sujeito (RANIERE; BARREIRA, 2010).

A entrevista foi realizada no mês de novembro de 2020 de forma virtual devido às precauções para frear o contágio da pandemia do Covid-19. Antes da realização da entrevista o participante recebeu um e-mail contendo o TCLE (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido), documento que esclarecia as etapas e os propósitos da entrevista e solicitava autorização para análise e publicação dos relatos. O projeto da pesquisa foi submetido e aprovado por um comitê de ética e pesquisa e foi usado um nome fictício de “Wagner” para preservar a identidade do entrevistado. A pesquisa teve apenas uma pergunta norteadora, “Qual o sentido da arte para você?” Todas as outras perguntas para instigar a expressão e adentrar à experiência do entrevistado foram feitas sob o próprio relato.

Caso wagner, entre sessões de psicoterapia e desenhos

Wagner, nosso entrevistado, é um Gestalt-terapeuta que atua como psicólogo clínico e dedica-se ao desenho de modo lúdico, sem vinculação teórica com nenhuma escola de desenho. Apesar de não ser desenhista profissional, possui uma intensa relação com o desenho que influencia à clínica tanto enquanto recurso terapêuticos como também em associações entre a prática do desenho e o exercício da psicoterapia.

À nível pessoal, descreve que a experiência de desenhar também o auxilia a compreender as próprias emoções, inclusive desenhava enquanto nos concedia a entrevista.

“Eu não estudo desenho, mas eu estudo a percepção do real e uma forma de representá-lo. Mas eu não estudo escolas, não estudo nada relacionado a um pensamento artístico de determinado movimento cultural... Nada disso... Minha vivência com arte é puramente prática, diversão, lazer, lúdico...”

Descreve que sempre que lhe é oportuno carrega consigo seus cadernos de desenho. Ademais, este hábito foi um dos elementos que nos chamou a atenção para entrevistá-lo.

“Uma folha em branco para mim é um convite, chega a dar uma tara ver caderno novo de desenho, para comprar sabe... Eu tenho três cadernos aqui para fazer, porque dependendo da oportunidade eu pego um e levo na bolsa pelo tamanho ou espessura... dependendo do lugar de onde eu vou eu pego um e levo.”

Wagner, ao mesmo tempo em que descrevia suas experiências com o desenho também refletia sobre o que viria a ser a concepção de arte. O seu modo de refletir sobre a experiência caracteriza a arte como uma espécie de comunicação que parece apontar sempre algo além do que já está dado.

“É uma coisa que eu nunca pensei muito a respeito, mas precisa ser algo que comunique alguma coisa para a gente, alguma coisa além... Além do próprio símbolo. Você desenha uma linha, se ela for compreendida como algo além de uma linha ela é arte.”

Um aspecto interessante é que esta concepção de Wagner sobre o que vem a ser a arte parece ter um desdobramento em um exercício de autoconhecimento. Pois sendo a arte um processo de comunicação que diz algo além do que já está posto, ele concebe que seus desenhos comunicam algo sobre ele.

“Isso de riscar, isso de colocar no papel alguma coisa que é minha, isso de dar forma, de me expressar, me expressar é conhecer de alguma maneira, de alguma maneira me conhecer. E me apropriar de... Eu não sei nem se é ‘apropriar’ a palavra, mas é de saber algo a meu próprio respeito.”

Nestas falas de Wagner dois aspectos nos chamam a atenção, a concepção da arte como uma forma de comunicação junto a certa imprecisão do que está sendo comunicado, de modo que a experiência do desenho aparenta envolver ao mesmo tempo determinada familiaridade e estranhamento, apesar de familiar, não é algo do qual se aproprie racionalmente.

Esta descrição nos remete ao questionamento se a arte poderia ser considerada uma linguagem. Sobre esta questão, simpatizamos com a colocação de Dufrenne (1967/2005) ao conceber que a arte não seria uma linguagem pela insubmissão à um conjunto de normas e regras que garantam uma transmissão clara e precisa de uma mensagem. Em contrapartida, reconhece que a arte ocupa um campo supra linguístico, impactando sem se traduzir com precisão se colocando de maneira mais translúcida ou opaco e ambíguo ao que o artista inicialmente se propôs a comunicar.

Partindo da concepção de arte enquanto um processo de comunicação e que expressa algo a seu respeito, Wagner a exemplificou a partir do próprio desenho de um animal selvagem que fazia enquanto nos concedia a entrevista.

“Eu tenho questões com raiva, assim é... Raiva é um sentimento que eu não entendo muito bem... E meio que pelo sentido da arte eu me vejo convidado a lidar com isso... E essas imagens dos animais no momento de agressividade isso me chama muito a atenção, sabe... Então quando eu coloco isso no papel é como se aquela coisa meio mágica... como se eu tivesse me sentindo com o poder que esse bicho tem. É como se fosse uma aproximação.”

De certo modo, Wagner reflete em analogias entre o fazer artístico e seu desenvolvimento pessoal. Desta maneira, associa dar forma aos desenhos a uma dimensão existencial de dar forma à própria vida, ao invés de deixar ser moldado por instituições e pela cultura.

“Cara, eu posso dizer que é uma das coisas mais importantes que eu posso fazer da minha vida, sabe? Porque se eu não der forma às coisas da minha vida outra coisa vai dar, a cultura, a sociedade, a família, sabe? Então eu me sinto muito responsável sob esse papel de dar forma, de dirigir meu próprio processo, sabe? De saber o que está acontecendo comigo e me envolver com isso, assumir o caminho a seguir.”

Frente as descrições de Wagner sobre sua experiência pessoa com desenhos nos sentimos convocados a refletir sobre o que é criar. De acordo com Ostrower (1977/2014), em diferentes âmbitos, criar trata-se de dar uma nova forma com base na capacidade e na necessidade de relacionar, reordenar e ressignificar diferentes elementos. Sendo o processo criativo influenciado por medos, anseios, expectativas e desejos o criador também se percebe no seu processo de criação. Deste modo, além de desejos e necessidades o ato criativo também envolve uma dimensão existencial.

Percebemos que o exercício do desenho tem um papel importante no cotidiano de Wagner, como um exercício prazeroso que também contribui para trabalhar com seus aspectos existenciais, como dar forma à própria vida ao invés de se deixar moldar passivamente a expectativas sociais de instituições como igreja e família. A noção de criatividade em Gestalt-terapia está associada à própria condição existencial aberta e inacabada, o processo criativo está associado à própria capacidade de reinventar-se (LEHMKUHL, 2015).

A questão da aptidão técnica é um dos aspectos que Wagner traz sobre o desenho e em seguida o associa à questão da psicoterapia. Num primeiro momento, referia-se à técnica do desenho como um elemento que facilita à expressão do que vinha à mente.

“Quando você vai amadurecendo assim a sua técnica, vai ficando um pouco mais fácil expressar o que você sente. Você consegue se por diretamente no ponto... Acho que é uma das coisas mais importantes”

Em um segundo momento, Wagner também pontuou qual seria o limite da técnica no desenho. Apesar de sua importância, a técnica não seria o único elemento que nortearia o processo de desenhar, no sentido de deter um controle sobre o processo.

“A técnica ela ajuda a dar um acabamento melhor. Eu acho que é mais isso aí... Dar um acabamento estético melhor... Mas ela não define aonde é que vai, ela não controla o processo”

O processo de criação integra diversos aspectos da experiência, não se reduzindo a orientações e direcionamentos exclusivamente conscientes e racionais, em seu âmago são também processos intuitivos. Como efeito, outros elementos podem vir ao primeiro plano da consciência à medida em que integram à nova forma que está sendo constituída no processo criativo. Sob esta ótica, o homem se percebe nas transformações e se transforma nelas. (OSTROWER, 1977/2014). Desta maneira, nos exercícios pessoais com desenho Wagner encontra um meio de fomentar sua autopercepção em relação a questões afetivas como o sentimento de raiva e o exercício de dar forma à própria vida.

A questão da reflexão sobre a técnica dentro do desenho irradiou-se para o âmbito da psicoterapia. Sob esta ótica, descreve que enquanto terapeuta eventualmente se percebe tentando se ater a um papel técnico, sendo tomado por uma necessidade de autoafirmação. Em contrapartida, descreve que

quando a experiência da psicoterapia se assemelha aos momentos em que está desenhando há uma abertura para a afetividade, com uma atenção flutuante e uma maior conexão com o paciente.

“Quando eu estou tentando ser mais técnico, quando eu tento me ater a um papel técnico, a uma competência técnica, a uma expectativa técnica eu me vejo assim invadido por um bocado de pensamentos, de dúvidas, de necessidades outras... Tipo necessidades de autoafirmação... Aí é uma coisa que me desorienta muito... Quando eu estou fazendo alguma coisa semelhante à quando eu estou desenhando, deixar uma atenção meio que flutuante, meio que vaga, meio que abstrata, tentando perceber algum sentimento, deixando o sentimento participar do processo e tal né... Quando eu faço uma coisa assim nesse sentido eu consigo me conectar com o paciente muito melhor...”

Sob esta ótica, Wagner descreve um mal-estar quando se percebe se atendo a um papel prioritariamente técnico. Em contrapartida, descreve momentos em que se encontra mais sensível e conectado a seu paciente, manifestando o desejo de ser um artista na psicoterapia.

“Eu consigo sentir a necessidade de navegar com ele muito mais, se eu ficar preso a uma perspectiva teórica ou técnica demais assim na hora do atendimento eu não me sinto bem... Algumas pessoas podem até gostar de uma perspectiva mais técnica, mas eu não gosto. Eu gosto de me ver enquanto pessoa na frente de outra pessoa, se eu pudesse escolher um tipo de pessoa para ser na frente de outra pessoa eu escolheria ser um artista.”

A respeito do desejo de um afastamento de uma postura técnica privilegiando uma maior conexão com o paciente nos remetemos ao que Alvim (2012) denominou como uma “clínica poiética”. Esta proposta enfatiza a clínica como lugar de criação espontânea. Sob este aspecto, a psicoterapia e a arte convergem pela ênfase na expressividade e na experiência. Sob esta ótica, se afasta da representação técnica do psicoterapeuta como aquele que detêm o saber e os meios para promover a cura do paciente.

Polster; Polster (1973/2001) parecem compartilhar com Wagner a preocupação com o excesso de racionalizações sobre o risco de que estas encubram a própria sensibilidade ao momento presente. Deste modo, considerando a Gestalt-terapia uma abordagem que dedica atenção a aspectos sensíveis no momento presente, alerta ao ímpeto do excesso de interpretações, sob o risco de encobrirem a própria experiência presente, o psicoterapeuta não como um olhar meramente intelectual, mas também sensível.

Neste sentido, com base em suas próprias experiências artísticas Wagner descreve pontos de convergência como uma atenção flutuante que leva a uma maior conexão com seus pacientes e o desejo de se aproximar da postura de um artista frente a seu paciente. Similarmente, Perls (1992/2012) tem a figura de um bom terapeuta como um artista considerando que para superar uma postura interpretativa e analítica se faz necessário um olhar sobre a totalidade, o que demandaria intuição e sensibilidade. Deste modo, encontramos uma proposta de psicoterapia que evitaria uma postura analítica e observaria a expressividade em sua totalidade levando o paciente a identificar suas

resistências e modos de ser enrijecidos considerando que os impasses e questões emocionais teriam uma resposta no tensionamento do corpo.

Entretanto, Wagner também reconhece riscos nesta postura sensível e comparável à arte, situando a própria terapia do psicoterapeuta como forma de buscar um equilíbrio.

“Dependendo do que o que o paciente traga eu posso ser arrastado por minhas questões pessoais na hora do discurso. Esta coisa de estar flutuante, de estar à deriva, de estar disponível tem esse problema... Porque eu tenho que estar disponível para tudo, não posso estar disponível apenas para algumas coisas. E aí às vezes algumas coisas me carregam, algumas coisas minhas me carregam. E eu estou fazendo terapia e isso ajuda, isso ajuda a ter um certo controle, uma certa lucidez sobre isso e me ajuda a sair.”

Deste modo, percebemos que a postura flutuante descrita por Wagner também envolve riscos e necessidade de cuidados. Sob esta ótica, a psicoterapia é uma atividade profissional que envolve estar aberto ao sofrimento e a angústias do outro. Deste modo, a psicoterapia para o próprio psicoterapeuta tanto se apresenta como um exercício de autocuidado, como também um exercício formativo para o aperfeiçoamento profissional.

Além da associação da arte com a psicoterapia comparando a postura de um artista e um psicoterapeuta, Wagner também descreveu o uso de recursos artísticos na psicoterapia. Curiosamente, se anteriormente ele descreveu sua inclinação ao desenho como um convite, descreve o uso dos recursos terapêuticos desta mesma forma.

“Sim, costumo, trabalho realmente com papel e lápis... E estou pensando em mais para frente colocar também massinha de modelar sabe... Porque uma folha em branco é um convite, é sempre um convite. Uma massinha de modelar que está ali, um bloquinho dela também é um convite...”

Sobre a questão dos recursos terapêuticos observa-se determinada concretude não apenas sobre a presença de tais materiais artísticos, mas até ponderações sobre o espaço físico do consultório.

“Mas gostaria de usar mais, inclusive estou adaptando minha sala para poder comportar um pouco mais de recursos além de papel e lápis. Vou organizar esse negócio das massinhas de modelar e não sei se tinta porque suja [...], e sujeira de tinta é ruim de lavar. Mas lápis de cor é mais fácil, mas é isso... Uso alguns e acho pouco... Quero usar mais.”

Dentro da proposta do uso de recursos artísticos, Wagner descreve uma curiosa prática onde propõe que ambos, psicoterapeuta e paciente, desenhem livremente ao longo da sessão de psicoterapia, chegando inclusive a trocar e terminar um o desenho do outro.

“A pessoa vem um dia sob um determinado estado de ânimo e fica riscando na folha, ela faz um determinado tipo de rabisco, não é... Às vezes a gente vai conversando com um paciente, eu vou fazer um desenho e ele vai fazendo outro, depois a gente

troca os desenhos, eu termino o dele e ele termina o meu... E aí por que chegamos assim? Por que terminei o seu desenho dessa forma? E aí vai né... É isso né... Porque só isso já dar muita coisa para conversar... Só isso já dar muita coisa para conversar... E aí é mais ou menos assim que eu... que eu trabalho né... As vezes peço para que eles desenhem imagens de sonhos também... Peço para eles desenharem e isso vai trazendo de volta muita coisa... Isso também né...”

Nesta fala de Wagner podemos observar o modo como ele se inclina de modo sensível à relação terapêutica, transformando suas impressões em desenhos, ao passo em que seu paciente também registra as impressões que têm durante o processo.

A Gestalt-terapia reconhece que o sofrimento emerge dentro da relação terapêutica, pondo ênfase na orientação do processo o modo como terapeuta e paciente se tocam. Como efeito, ao invés de intervenções previamente planejadas o fluxo da terapia privilegia um caminho espontâneo uma criação conjunta entre o paciente e o terapeuta (LOBB, 2013). De modo interessante, a co-criação em psicoterapia parece ter adquirido determinada literalidade na medida em que Wagner e seu consulente materializam suas impressões em seus desenhos.

Wagner também descreveu a literatura como outra prática envolvendo recursos artísticos na psicoterapia. Assim como na descrição do uso de desenhos, Wagner também se lançava sobre a literatura e ambos trouxeram livros para a sessão de psicoterapia e ambos compartilharam suas passagens favoritas.

“Aí um dia a gente combinou de ela trazer um trecho de um livro que ela gostava e eu trazer um trecho de um livro que eu gostava... E aí depois da gente ler ela começou a me explicar o porquê de ela gostar daquele livro. Aí eu falei o porquê de eu gostar do meu e a gente começou a conversar com um processo de leitura para conseguir dialogar. [...] vou falar sobre uma coisa que eu gosto, sobre uma coisa que eu me sinta confiante e a partir daí me sinto autorizada a falar. E a partir daí começou a se expressar a partir de outras questões também...”

A introdução destes recursos artísticos parece adentrar à psicoterapia como formas variadas de se expressar e, por conseguinte, parecem um estímulo a um olhar contemplativo do terapeuta. Wagner sintetiza o convite para o uso de tais recursos como uma permissão para contemplar o paciente.

“Eu acho que isso aí começou... Essa abertura começou porque a gente começou a ler coisa que ela gostava. Me deixe contemplar você né... Me deixe que eu te contemple, me deixe que eu te observe!”.

No âmbito da observação do trabalho de outros artistas, Wagner não se furta de avaliar criticamente outros desenhistas. Na entrevista, Wagner avaliou negativamente outro desenhista que chamava atenção nas redes sociais por fazer desenhos em azulejos de forma rápida. Apesar de considerar que o processo pareça interessante, aponta a falta de originalidade nos desenhos, comparando-o pejorativamente a uma impressora.

“É divertido ver o processo, mas na real mesmo é meio, parece assim o processo de uma impressora, o camarada parece uma impressora. Aí quando é assim eu não acho tão interessante não. Continua sendo arte. Mas perde em termos de comunicação de alguma coisa... Eu acho que fica um desenho um pouco pobre. No começo eu achava bem legal que ele fazia bem rápido. Mas depois me parecem todos iguais sabe...”

De modo aproximado, a questão da originalidade reaparece na descrição da psicoterapia considerando a busca do original como seu objetivo.

“Não precisa ficar acontecendo toda hora... Não dar pra sustentar uma originalidade toda hora... Mas precisa ser buscado, acessado, expresso, vivido, sentido. Por que se não há nada original em nós o que que nós somos? Uma cópia de papel. É muito isso, o fazer psicológico, a área clínica... E eu não me contentaria de dizer só a área clínica que é o berço, é a base... Precisa ter isso como horizonte, assim... A busca pelo original... Por mais que esse original possa ser repetido na sociedade. Possa ser repetido no dia de atendimento... Mas o original ele precisa estar ali e aparecer de algum jeito...”

Destarte, a descrição da psicoterapia com ou sem tais recursos artísticos, parece estar orientada pela busca da originalidade na conotação de um elemento estético. Segundo Dufrenne (1967/2005) a valorização ou desvalorização de determinada obra eventualmente certamente pode estar relacionada a algum valor de uso instrumental ou adequação à determinada tradição cultural. Entretanto, a apreciação estética pede do expectador um olhar desinteressado e ao mesmo tempo engajado na contemplação da obra, os valores estéticos depositados pelo artista em seu processo de criação podem ser reconhecidos e renovados pelo expectador que possui suas próprias tendências e inclinações.

Frequentemente a associação entre arte e Gestalt-terapia é relacionada a recursos terapêuticos que intensifiquem a expressão dos sentimentos. Por outro lado, a orientação estética se ocupa com aspectos relacionados a suas qualidades, sensibilizando o olhar para elementos estéticos, categorias usualmente associadas a trabalhos artísticos, presentes também na expressividade do paciente em psicoterapia (MILLER, 2011). Neste caso, é curiosa a forma que Wagner avalia criticamente o trabalho de outro desenhista por falta de originalidade, ao passo que, dentro de sua postura contemplativa na psicoterapia, também parece procurar por este atributo.

Pensar a criatividade em Gestalt-terapia envolve tanto olhar do ponto de vista do funcionamento saudável do paciente pelas suas possibilidades de enfrentamento das circunstâncias em que se encontra, como também do ponto de vista do psicoterapeuta lançar mão de toda sua inventividade para possibilidades de intervenção (LEHMKUHL, 2015). Sob esta ótica, as experiências artísticas de Wagner parecem estimular diferentes formas de intervir como os desenhos, trechos de livros, bem como uma orientação de seu olhar contemplativo.

Alvim (2007) repensa a Gestalt-terapia, considerando como as influências artísticas de seus fundadores implicitamente colaboraram para uma

psicoterapia que rompe a dicotomia entre razão e sensibilidade, o que denominou como “fundo estético”. De modo aproximado, Wagner parece ter desenvolvido o seu próprio fundo estético pelo modo como suas experiências artísticas e clínicas se integram seja na proposta de experimentos, como nos desenhos, nas trocas de trechos de livros, na percepção do fluxo da experiência clínica semelhante à experiência de desenhar ou na sensibilização a qualidades estéticas como a originalidade.

Considerações finais

Na parte inicial deste artigo apresentamos aspectos que aproximam a arte da Gestalt-terapia como o olhar sensível sobre a totalidade, a influência das experiências artísticas dos fundadores da abordagem e similaridades entre o ato artístico e a psicoterapia. Sobre esta apresentação inicial é importante pontuar que não estávamos ensaiando possibilidades de articulação entre os dois campos, mas elucidando os traços que a dinâmica da abordagem compartilha com as experiências artísticas presentes desde a fundação da abordagem.

Frequentemente a associação entre a arte e Gestalt-terapia costuma ser associada ao uso de recursos artísticos, uma abordagem psicoterapêutica pegando de empréstimo elementos da arte para intensificar a expressão. Sob esta ótica, procuramos tratar a questão da relação entre a arte e a Gestalt- terapia como a relação entre dois campos, daí a motivação de explorar a experiência de um Gestalt-terapeuta que transita entre estes dois campos estando abertos à toda pluralidade de sentidos que possam ser atribuídos.

Considerando a Gestalt-terapia uma modalidade de psicoterapia que enfatiza à atenção à situação concreta aqui-agora o estudo sobre a experiência de Wagner nos proporcionou observar os nuances da relação entre a arte e a Gestalt-terapia como uma sensibilização para elementos estéticos presentes na expressividade, a dinâmica do processo criativo entre dar forma e contornos aos seus desenhos e dar forma à sua própria dimensão existencial, a experiência artística como parâmetro de espontaneidade, comparando uma boa sessão de psicoterapia ao ato de desenhar em contraponto a um olhar técnico e, por fim, o uso de recursos artísticos na clínica.

Pensar a arte e a Gestalt-terapia como uma interface entre campos, recoloca o olhar sob a abordagem a partir de um prisma artístico elucidando as influências que o campo da arte teve na construção da Gestalt-terapia bem como pensar a potência que tal relação pode vir a estabelecer.

REFERENCIAS

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Endereço para correspondência

Dácio Pinheiro Carvalho Filho

E-mail: daciopcarvalho@gmail.com

Georges Boris

E-mail: geoboris@unifor.br

Recebido em: 06/10/2022 Aprovado em: 31/12/2022