ARTIGO
Existencialismo e psicologia: um ensaio sobre a liberdade
Existentialism and psychology: an essay on freedom
Marcelo da Silva Alves Pires
RESUMO
Entre os temas centrais ao existencialismo temos a defesa da singularidade existencial do homem, de sua liberdade, responsabilidade e angústias que decorrem da própria existência. Mesmo que a liberdade seja entendida como imanente ao homem, dificuldades na compreensão da filosofia existencialista levam a associarmos a ideia de liberdade à ausência de limites, determinações e não consideração de fatores contingenciais ao comportamento humano. Assim, é essencial entendermos o contexto em torno da noção sartreana de liberdade, tão importante ao modo existencial de ver o homem e de ver a psicologia e a psicoterapia. Nesse sentido, este ensaio discute o existencialismo, tendo como foco o conceito de liberdade e suas implicações no campo filosófico e no movimento fenomenológico-existencial e humanista dentro da psicologia. Concluímos ao longo das discussões apresentadas que, se a autonomia do homem é limitada, dados os condicionamentos concretos para o exercício da liberdade, sua condenação a viver as consequências de suas ações, decisões e posicionamentos é inescapável. Lidar com essa dialética, auxiliar o sujeito a tomar consciência de seus projetos, potencialidade e limitações, a dar sentido e a se posicionar diante dos objetos de sua consciência são parte essencial daquilo que as psicoterapias de orientação fenomenológico-existencial propõem.
Palavras-chave: Existencialismo; Psicoterapia; Liberdade.
ABSTRACT
Among the central themes to existentialism we have the defense of the existential uniqueness of man, of his freedom, responsibility and anguish that result from his own existence. Even though freedom is understood as immanent to man, difficulties in understanding existentialist philosophy lead us to associate the idea of freedom with the absence of limits, determinations and non-consideration of contingent factors to human behavior. Assim, é essencial entendermos o contexto em torno da noção sartreana de liberdade, tão importante ao modo existencial de ver o homem e de ver a psicologia e a psicoterapia. In this sense, this essay discusses existentialism, focusing on the concept of freedom and its implications in the philosophical field and in the phenomenological-existential and humanist movement within psychology. We concluded during the discussions presented that, if man's autonomy is limited, given the concrete conditions for the exercise of freedom, his condemnation to live the consequences of his actions, decisions and positions is inescapable. Dealing with this dialectic, helping the subject to become aware of his projects, potential and limitations, to give meaning and to position himself before the objects of his consciousness are essential parts of what phenomenological-existential psychotherapies propose.
Keywords: Existentialism; Psychotherapy; Freedom.
Introdução
Mesmo que as abordagens existencialistas não se constituam numa posição única, podemos reconhecer uma base comum em torno da procura do significado e do sentido da existência e do homem. Seu desenvolvimento se dá em várias frentes, com destaque para as obras filosóficas de autores como S. Kierkegaard (1813-1855), M. Heidegger (1899-1976) e J.-P. Sartre (1905-1980). Entre seus temas mais essenciais, como já verificado por Teixeira (1997), temos uma defesa em torno da singularidade existencial do homem, de sua liberdade essencial, da responsabilidade e da angústia que decorrem da própria liberdade, além de debates em torno da morte, da autenticidade e dos valores.
Neste ensaio, destacaremos a noção de liberdade como um conceito central para o existencialismo filosófico, especialmente da forma como desenvolvida por Sartre, discutindo suas implicações e consequências no campo filosófico e nas ciências humanas, assim como para as psicoterapias de inspiração fenomenológico-existencial.
Se, por um lado, o conceito de liberdade é tomado no existencialismo como absoluto e essencial ao homem, por outro, dificuldades na compreensão da filosofia existencialista promovem uma confusão ao associar a ideia de liberdade à ausência de limites, determinações e não consideração de fatores contingenciais ao comportamento humano.
Quando Skinner recusa o livre-arbítrio, defendendo que o comportamento humano não pode ser aceito como incondicionado e não-determinado (Baum, 1999; Skinner, 1970, 1995) ele parece, conjuntamente, condenar as ideias que aparecem no discurso existencialista sobre a liberdade existencial. Essa condenação é fácil de ser percebida também com todo avanço das ciências biológicas, sociais e humanas.
Hoje, conhecemos, muito melhor que outrora, um amplo conjunto de fatores biológicos, culturais e ambientais eficazmente atuantes sobre o complexo comportamento humano, tornando qualquer ideia que defenda uma ampla indeterminação sobre o comportamento a cada dia mais inaceitável e ingênua. É exatamente este o ponto a ser discutido neste ensaio.
Será o conceito de liberdade existencial uma defesa de que o comportamento é indeterminado e, por consequência, incompreensível às ciências humanas e comportamentais? Dizer que o homem é fundamentalmente livre implica em dizer que seu comportamento é errático e imprevisível em absoluto? O que, de fato, estamos afirmando ao dizer da liberdade fundamental e inescapável do homem?
Diante de tantas e diversas limitações impostas não só pela genética, mas também pelo ambiente, pela cultura, por aspectos que vão desde os mais simbólicos da esfera sociocultural até aspectos os mais concretos e objetivos de natureza econômica e política, como podemos dizer que o homem é irremediavelmente livre, se ele tem o exercício da liberdade tão limitado por condições que lhe são estranhas e por tantas vezes inacessíveis?
A liberdade tem se tornado tema caro à sociedade moderna (Bauman, 2008, 2011), nunca fomos tão capazes de controlar o outro e nunca sofremos tanto o paradoxo em torno de nossa liberdade e de nossa incapacidade de exercê-la. É nesse sentido que nos parece tão necessário e relevante entendermos o contexto em torno da noção de liberdade existencial tão defendida por Sartre e tão importante ao modo fenomenológico-existencial de ver o homem e de ver a psicoterapia. É para apontar possíveis respostas a estas questões que pretendemos apresentar o existencialismo enquanto movimento filosófico, tendo como foco o conceito de liberdade assim como sua articulação com as psicoterapias de inspiração existencial, buscando caracterizar o conceito de liberdade em face às confusões conceituais apresentadas.
Por se tratar de estudo teórico-conceitual, este artigo de revisão, em forma de ensaio, é elaborado a partir da leitura, análise crítica, e desenvolvimento argumentativo-conceitual. São utilizados, como fundamento ao exercício argumentativo, tanto textos clássicos, a exemplo de obras de Kierkegaard e Sartre, quanto algumas leituras modernas sobre o existencialismo e suas implicações na prática psicológica, tendo como foco a maneira como o conceito de liberdade é tratado e suas consequências para a visão de mundo existencialista presente na psicoterapia de orientação fenomenológico-existencial e humanista.
O Movimento Existencialista
Tendo ganhou força numa Europa devastada pelo pós-guerra, o movimento existencialista defendeu em todas as suas frentes, que na busca pela compreensão da ação e existência humana era preciso abandonar a busca por generalizações e abstrações e priorizar a existência concreta e singular. Encontramos essa defesa desde Kierkegaard, quando este enfrenta a busca por generalização e universalismo (Kierkegaard, 1959, 1979a, 1979b, 2013).
Para Kierkegaard era necessário reagir ao pensamento de caráter universal, determinista, generalista. Kierkegaard inicia um movimento pelo singular, pelo abandono de uma pretensa realidade abstrata e pela busca daquilo que é concreto na singularidade da existência. No período pós primeira guerra, e certamente influenciado pelo clima de sofrimento, pela morte, pelas destruições e frustrações em relação ao homem, assim como também pela tendência na filosofia e nas ciências de uma busca por universais e generalizações próprias ao pensamento pós-hegeliano, uma filosofia existencialista começa a se estruturar inspirando-se na oposição de Kierkegaard ao idealismo e ao universalismo de Hegel (1974).
Na defesa desses princípios seguiram outros filósofos e pensadores relevantes de um modo ou outro para a psicologia, como Martin Buber (1868-1965), Karl Jaspers (1883-1969), Martin Heidegger (1889-1976), Jean-Paul Sartre (1905-1980). Cada um deles (Buber, 1974; Jaspers, 2005; Heidegger, 1979, 2002; Sartre, 1987, 1997) defendeu um ser humano autenticamente comprometido com a própria existência e liberdade, num mundo real, concreto, instável e, em muitos sentidos, contraditório.
A valorização do homem singular, então, aparece em todo o existencialismo desde Kierkegaard, demonstrando o caráter humanista do movimento, como bem observa o próprio Sartre ao dizer que o existencialismo é um humanismo (Penha, 1987; Sartre, 1987, 1997). Essa aproximação com a concretude da vida humana, que se tornou tão evidente com a guerra leva o existencialismo a refletir sobre dor, sobre liberdade, sobre angústia, sobre a morte.
Existir passa a ser definido como algo fundamental ao homem, mas como algo não definido aprioristicamente. Existir é ir existindo, sendo, se construindo, se realizando, se fazendo. Há um processo inerente à noção de existência. Aos poucos vemos aparecer, desde Kierkegaard à Sartre esse ir existindo como algo intrinsecamente relacionado às decisões e escolhas autônomas do homem concreto dentro de uma realidade existencial. Esse mundo de escolhas, de um homem que é convocado a sempre se posicionar, leva o homem a um conflito que lhe é constituinte. Uma vez chamado a escolher ele se depara com a incerteza, com a angústia, com um mundo de perdas, de frustrações, de morte. A realidade existencial, sempre singular e concreta, acaba por constituir também, como característico para o existencialismo, a noção de que o homem é indefinível aprioristicamente, sendo definido sempre à posteriori, não por uma pretensa essência ideal do que deva ser o homem, mas pelo legado do homem concreto, a partir de sua própria história concreta e singular, a partir da forma singular como cada sujeito exerce sua liberdade em sua existência, dentro das condições concretas que encontra ao longo de sua trajetória vital.
O Existencialismo Sartreano e a noção de Liberdade
O cerne da filosofia de Sartre é o reconhecimento de que a existência humana não é determinada nem antecedida por nenhuma realidade ideal, pelo que a existência é contingente e gratuita. Deste modo, o homem fica obrigado a inventar a sua própria vida, com uma responsabilidade total e irredutível.
Ao inverter o pensamento tradicional e afirmar que é a nossa existência concreta e empírica que constrói, como legado, não como destino, a nossa essência, Sartre determina o que é o pensamento existencialista e engrandece a força daquilo que nos faz humanos, a nossa liberdade de consciência, de sentido. O quem sou eu só pode ser respondido a partir de quem eu fui ao longo de minha existência, como eu me defini através de meus atos, dos frutos da minha existência, do meu legado.
Influenciado pela obra Ser e Tempo (Heidegger, 1979, 2002), Sartre aceita que o que há de característico na existência humana é que este é responsável por definir-se, ao contrário de tudo o mais. As coisas, os objetos do mundo, são aquilo que são, dependem do sentido que nós damos a elas, seus sentidos lhe são exteriores, lhe são dados. Já o homem, além de não vim com sentido pré-definido, ele próprio é condenado a definir-se enquanto vive. Não há, para o existencialismo nada nem ninguém para pôr a culpa.
Esse é o sentido de dizer que o existencialismo é um humanismo. Filosoficamente, é devolver ao homem a responsabilidade sobre si mesmo. Assim, o existencialismo, filosoficamente, retira da equação a ideia de uma divindade, ou de qualquer sobredeterminação atuante sobre o humano. Sendo humanismo, coloca nas mãos da própria humanidade a responsabilidade por constituir-se através da ação concreta de cada homem (Sartre, 1987, 1997).
Ao defender uma liberdade constituinte do homem, Sartre aponta que a partir de sua própria liberdade, sua responsabilidade sobre si também é radical. Esse homem se lança responsavelmente sobre seu próprio futuro, a partir dos elementos que encontra no seu presente. Claramente suas ações são contingenciadas por esses objetos e condições externas, que podem ser mais ou menos constritivas em relação às suas possibilidades. Ainda assim, a atitude humana diante de suas possibilidade e limites se torna uma atitude ativa, esse homem será sempre chamado a se posicionar diante do mundo que habita e vive.
Para ser, para construir-se, o homem torna-se agente responsável por si mesmo enquanto projeto e enquanto execução. Caso contrário, não haveria o que o diferenciasse dos objetos do mundo.
Liberdade, Responsabilidade, Angústia e Má-Fé
Como temos visto até aqui, Sartre foi categórico em sua obra em afirmar a condenação do homem a liberdade (Penha, 1987; Sartre, 1987, 1997), e atribuiu toda e qualquer forma de se negar a essa liberdade, e a responsabilidade que se impõe como consequência do exercício da liberdade, como uma forma do que ele chamou de má-fé. Para Sartre não é dada ao homem a possibilidade de não escolher, pois mesmo ao renunciar a sua própria liberdade ele está fazendo uso de sua prerrogativa de liberdade, mesmo diante da ameaça de morte temos que decidir entre ceder a ameaça ou aceitar a morte.
Dentro do tripé conceitual das abordagens fenomenológico-existenciais e humanistas, o existencialismo denuncia o homem condenado à liberdade, assim como sua responsabilidade inalienável quanto à maneira como lida com essa liberdade. Esse sujeito, condenado a se posicionar, percebe que essa liberdade fundamental, longe de lhe trazer paz e bem-estar, lhe confronta com a angústia, com o peso da responsabilidade por suas escolhas e com a incerteza existencial. Ao assumir a própria liberdade, no mesmo momento, o homem também se torna responsável pelas consequências de suas escolhas e precisa conviver com a incerteza a respeito das consequências que suas escolhas lhe trarão (Kierkegaard, 1979b, 2013; Sartre, 1987, 1997).
A má fé, então, tal como definida por Sartre, vem falar da tentativa de fugir da responsabilidade inerente ao existir. Da tentativa de não pagar o preço da consciência de suas escolhas. Como consequência dessa responsabilidade e liberdade radical, o existencialismo retira aquilo que sempre funcionou como um bálsamo para as angústias humanas, a possibilidade de atribuir a algo ou a alguém fora de si mesmo, a responsabilidade por suas desventuras, por seus sofrimentos, fracassos e frustrações (Sartre, 1987, 1997).
A má-fé constitui uma falsificação da consciência, uma falsificação na atribuição de sentido quanto a responsabilidade em relação àquilo que define o homem. Na má-fé o homem dirige a si mesmo um engano, quando insiste em exteriorizar a atribuição de responsabilidade. Diante da angústia trazida pela responsabilidade do seu exercício de liberdade, o homem busca desesperadamente falsear a atribuição de responsabilidade. Para o homem da má-fé, nunca tem a ver com ele, nunca é responsabilidade dele. A má-fé, em resumo, é a tentativa humana em afirmar que eu não tive escolha.
Entre a decisão, a ação e suas consequência, pode o homem tentar refugiar-se na má-fé, ou assumir sua angústia original, aceitá-la e se posicionar, reconhecendo que não há lugar para determinismos existenciais, apesar de todo contingenciamento sobre a ação humana, uma vez que a própria existência, não só precede a essência, como a constrói.
Rejeitar a má-fé é aceitar que existir uma existência humana é existir na liberdade. É aceitar que se está condenado a mover-se na liberdade, sendo responsável por tudo que fizer e realizar enquanto sujeito lançado no mundo, tal como defendido por Sartre (1987).
Esse peso proposital presente na ideia de condenação se deve ao intento de enfatizar que a liberdade é constituinte do humano, não havendo liberdade para não ser livre. Por isso cada tentativa de esquivar dessa liberdade e da responsabilidade como consequência é vista como má-fé. Para Sartre, mesmo ao não escolher, estamos fazendo uma escolha - a escolha, ainda que não consciente, de deixar que o outro nos determine - e pagaremos o preço por ela. Mesmo quando somos forçados ao que não queremos sob pena do açoite ou da morte não estamos livres da responsabilidade. Escolhemos ceder ao carrasco, porque escolhemos por nossa integridade, por nossa vida. E ainda assim nos mantemos angustiados, porque nunca teremos certeza a respeito do tipo de consequência que virá a partir de nossas escolhas e atos.
Uma forma moderna de atribuição de má-fé é a postura determinista vista em relação à fatores sociais ou mesmo genéticos. Não se trata de não reconhecer o papel que a genética exerce sobre o organismo, nem mesmo de dizer que o contexto social e ambiental não é relevante. O risco está na estagnação que pode decorrer de atribuições deterministas. O indivíduo pode ser levado à alienação e a se conformar, sob a premissa de que é vítima da sociedade, ou da genética. Pelo contrário, um ponto de vista existencial, pautado na liberdade constituinte do humano, vai reconhecer nesses fatores o contexto dentro do qual se exige posicionamento e construção de sentido.
Considerando que suas condições econômicas não são favoráveis, como o homem deve prosseguir? Considerando suas vulnerabilidades genéticas, quais são suas opções? Como pode se posicionar, que sentido dará a essa realidade na qual se encontra? O existencialismo não nos diz que as opções são absolutas, mas que escolher é absoluto.
Esse é o principal engano na crítica ao existencialismo e à liberdade. Ao confundir a liberdade existencial com a liberdade de opções se torna claro que não sou livre para fazer qualquer coisa ou para ter qualquer coisa. Pareceria não só errado, mas ingênuo, defender tal coisa. Posso não ter a opção de escolher a casa que eu quiser, o carro que eu quiser, as opções que eu quiser, dadas as condições globais que me contingenciam. Mas sou condenado a escolher como me posicionar diante desta tal realidade. Posso simplesmente desistir do carro, ou trabalhar a vida inteira, renunciar a todo o resto, para comprar um. É nessa escolha contextualizada que nossa liberdade se constitui, como um projeto num mundo, como um projeto que se atualiza constantemente numa dialética existencial constituída pelo homem e pela realidade em que este habita e existe. E é não saber o que este mundo nos reserva, não sermos capazes de antecipar as consequências de nossas escolhas ou as condições que nos serão apresentadas, que nos leva à angústia.
Em outras palavras, liberdade e angústia são coexistentes. A angústia é a própria consciência de liberdade, é o modo de ser da liberdade, não um sintoma passível de ser sanado (Sartre, 1997).
Liberdade, Intencionalidade e o Ser-no-mundo: uma relação dialética
A noção de liberdade, como tentamos descrevê-la, precisa ser sempre vista em relação dialética com o mundo dentro do qual ocorre. Isso nos coloca em acordo com a noção Heidegeriana que entende o homem como ser-no-mundo, um ser que só pode ser compreendido no seu existir, enquanto existindo concretamente no mundo, ao mesmo tempo em que ao atribuir-lhe sentido e significado, estabelece com este mesmo mundo uma relação intencional (Heidegger, 1979, 2002).
Diante dos diversos sentidos simplificadores que são colocados sobre o existencialismo devemos compreender que sua filosofia, em suas diversas formas, entende que as condições que são apresentadas ao homem para o seu existir lhe antecedem.
Essas condições são essenciais para entendermos o contexto existencial no qual cada sujeito, em sua concretude, existe e vive. Mas se essas condições são exteriores e anteriores ao sujeito, este não pode carregar o peso da responsabilidade sobre o que lhe antecede. Mas é compelido (condenado) a assumir a responsabilidade sobre o como reagir a essas condições e acontecimentos.
Quando se limita a apontar para fora de si, a queixar-se das condições que se abateram sobre ele, o homem se torna inerte e incapaz, mas quando o sujeito toma essas mesmas condições e busca identificar como ele em particular pode reagir da melhor maneira possível, a partir das condições que possui enquanto sujeito e diante das condições ambientais que lhe são impostas, ele ganha uma chance, ele assume a agência sobre si e sua existência.
Outro aspecto nessa relação homem-mundo é aquele que o relaciona ao coletivo. Podemos ter a grande impressão de que o existencialismo cria uma bolha individualista sobre o homem. Mas ao contrário disso, ao trazer para o conjunto de singularidades a busca antes direcionada aos universais, o existencialismo liga o homem ao coletivo, uma vez que é a partir daquilo que o homem faz, a partir de cada ato humano, que definimos o que entendemos por humanidade.
A humanidade se torna aquilo que os homens fazem. Ao fazer uma escolha, eu, como humano, estou dando minha contribuição para uma definição, também a posteriori, daquilo que chamamos de humanidade. Ao me posicionar de uma forma ou de outra eu dou um exemplo, uma imagem, daquilo que o homem é.
Desse modo, a minha responsabilidade não se encerra em mim. Ela me transcende ao me vincular a minha própria coletividade. Aceitar isto ou aquilo como valor para mim é, ao mesmo tempo, defender que é assim que acredito e julgo que os homens devem ser (Sartre, 1987, 1997).
Sartre, então, descreve o homem como um ser-em-relação, com o próprio corpo, com o mundo, com os outros, com a exterioridade, enfim, remetendo à noção heideggeriana (Heidegger, 1979, 2002) de ser-no-mundo. Sendo ser-em-relação, o homem só o é quando existente em uma realidade que lhe é exterior, de outra maneira, considerar o outro e o mundo como constituintes daquilo que podemos chamar de sujeito individual, é um requisito do existencialismo.
Se não há homem fora da relação com o outro e com o mundo, falar em individualismo, em ignorar o coletivo e o contexto social e ambiental não só é errado como seria a completa descaracterização do humano, na forma como o existencialismo o vê.
Outra forma de percebermos a vinculação entre o sujeito e seu mundo vem da vinculação entre o existencialismo e a fenomenologia. O próprio existencialismo deve seu desenvolvimento à aplicação do método fenomenológico à tentativa de entendimento da existência humana. Não à toa chamamos de abordagens fenomenológico-existenciais, os campos da psicologia orientados conjuntamente por essas filosofias complementares.
A fenomenologia adota e desenvolve o conceito de intencionalidade, ao defender que a consciência é sempre consciência de alguma coisa, de alguma exterioridade em relação a si mesma. Para a fenomenologia, assim como para o existencialismo, a consciência não se encerra em si. E o homem, por consequência, não se encerra em si. A consciência e o homem só podem ser compreendidos imersos nessa relação intencional e existencial com sua realidade concreta.
Quando defendemos que não há mundo sem homem nem homem sem mundo estamos dizendo, por um lado, que o mundo só é mundo para nós quando de algum modo nos atinge, sendo dotado de sentido e significado. Por outro lado, o homem só se constitui em suas relações concretas com um mundo que lhe é exterior, não podendo ser definido no vácuo existencial.
Por isso vemos em Sartre (1997), assim como pudemos ver em Heidegger (1979, 2002) que não existe mundo significativo sem homem nem homem sem mundo e sem os outros. A intencionalidade reside aí. Nosso mundo é, por nós, carregado de sentido, e nós existimos apenas quando inseridos em condições existenciais, históricas e culturais concretas, numa relação sempre dialética. Ao nos apropriarmos dessas condições concretas de existência, ao darmos a elas significado e sentido, constituímos nossa objetividade e nossa subjetividade, através de nossos atos, de nossas atitudes, de nossos posicionamentos e escolhas.
Tomando como ponto de partida essa relação dialética entre subjetividade e objetividade (Sartre, 1987, 1997), Sartre destaca a ameaça que reside na presença do outro. Esse outro é constituinte de minha existência, porém este outro, sendo sujeito, é dotado da mesma liberdade. Ele também, via intencionalidade, oferece a mim, enquanto constituinte de seu mundo, sentido e significado. Então, o que eu faço aparece ao outro como objeto de sua consciência.
De outro modo, o meu processo autoatualização, meu constante vir a ser, é constantemente congelado pelo outro que, necessitando me objetivar para me apreender como parte de seu mundo, reduz-me a uma totalidade acabada na qual se perde a condição de sujeito. Passo então a ser-para-o-outro, na condição de objeto. Assim, as relações interpessoais aparecem como relações essencialmente paradoxais, ao mesmo tempo necessárias à minha constituição enquanto existente e enquanto sujeito e fonte inevitável de alienação e de objetificação, me restringindo enquanto horizonte de possibilidades.
Contudo, vemos a tensão que esse paradoxo guarda sobre a liberdade, quando o sujeito é convocado a equilibrar seu impulso pela própria liberdade, com seus condicionamentos do passado e aprisionamentos nas relações objetais estabelecidas com os outros e com o mundo.
Por fim, devemos compreender que ser livre é não ter opção a não ser fazer escolhas concretas ao longo de nossa trajetória existencial, porém, é necessário lembrar que toda liberdade é liberdade situada em realidades objetivas, contingenciadas no tempo e no espaço e no confronto com obstáculos concretos.
Não se trata, então, de uma liberdade de obtenção daquilo que se quer, mas sim de uma liberdade de eleição e de posicionamento sobre o que se quer como projeto para si e sobre como se posicionar diante dos obstáculos concretos que se impuserem entre o homem e a realização de si enquanto projeto. Não podemos escolher as situações que encontraremos e enfrentaremos, mas teremos que escolher nossa atitude em relação a elas.
Essa visão dialética que discutimos aqui também caracteriza todo o movimento humanista. O ser humano condenado à liberdade é convocado, de modo a constituir-se enquanto sujeito, a se posicionar diante de uma realidade que lhe é independente e que limita e direciona suas possibilidades. Essa visão dialética também coloca o homem como sujeito individual e coletivo, ao mesmo tempo capaz de produção de sentido e contingenciado por múltiplas e poderosas influências histórico-culturais e ambientais.
É esse, então, o homem para o humanismo. Um homem que luta para constituir-se como sujeito, enquanto se vê implicado e comprometido com sua realidade fenomenológico-existencial. Para Amatuzzi (2001, 2010), esta visão de homem em um devir sócio-histórico e dialógico nos possibilita reconhecer, diante de todo contingenciamento histórico e ambiental, um ser humano dotado de autonomia existencial sobre as próprias determinações que o afetam.
A Psicoterapia Existencial
Conforme já discutimos acima, o existencialismo sartreano traz, como uma de suas principais contribuições ao campo da psicoterapia, uma importante discussão sobre o tema da liberdade.
Podemos perceber que o homem, diante de seu adoecimento, sente que de algum modo está sendo privado de sua liberdade. Ao adoecer, algo que ele pensa que deveria poder fazer ou se negar a fazer, ou que deveria poder decidir fazer ou não fazer, passa a ocorrer sem a sua aparente anuência.
O homem, em sua patologia, passa a se comportar de forma incoerente com sua própria homeostase e com seu próprio bem-estar. Ao se sentir incapaz de viver e existir conforme o que julga melhor para si, e ao se deparar com o sofrimento que isto lhe traz, parece ao homem que ele se tornou passageiro de si mesmo, sua liberdade existencial foi questionada.
Dessa forma, a busca pela psicoterapia, num contexto existencial, não é outra coisa senão uma busca pela capacidade de retomar a própria capacidade em relação ao exercício de liberdade, mesmo diante das adversidades e exigências impostas na relação homem-mundo. O progresso do processo psicoterápico implica, então, a retomada da autonomia do sujeito. E essa postura, essa atitude de consciência, esse assumir a própria liberdade e responsabilidade nunca pode ser outorgada ou dada pelo outro, mas apenas assumida pelo próprio sujeito.
Pelo contrário, se assumirmos a responsabilidade pelo outro, quando decidimos ou fazemos por ela, estamos impedindo a pessoa de vivenciar sua própria história, de seu exercício existencial, sua única chance de desenvolver-se.
Aqui reside um grande desafio para o psicoterapeuta, o de não tomar a responsabilidade de seu cliente em suas mãos. Quando o terapeuta aceita essa posição, ao deslocar para si a responsabilidade sobre as decisões e posicionamentos do sujeito, ou ao explicar para ele, de maneira linear e pouco reflexiva, os seus sintomas e questões a partir de eventos biológicos, ambientais ou culturais, ele aplaca a angústia, pelo menos temporariamente, mas assume o risco de lançar o sujeito ao campo da má-fé, pois agora este pode responsabilizar algo ou alguém por suas desventuras existenciais.
Na má-fé o sujeito perde sua capacidade de minimamente reconhecer que suas questões e angústias dependem de relações intencionais estabelecidas entre ele próprio e o seu mundo significativo, dependem da forma como ele significa e dá sentido ao que lhe ocorre. Assim, acaba-se por reforçar uma separação existencial entre o sujeito (enquanto ser de responsabilidade e ligado intencionalmente à sua própria existência) e sua vida. Se o sujeito não reconhece, por menor que seja, sua participação intencional e responsável na construção dos caminhos que resultam em seus próprios sofrimentos (Yalom, 1984), ele se torna o sujeito da má-fé, não consegue enriquecer-se enquanto sujeito, e está fadado a permanecer inerte e entregue a sorte.
Para além disso, tudo é importante que percebamos também que a própria empreitada psicoterápica é produtora de angústia. Na psicoterapia, o sujeito é posto diante de um universo de possibilidades ampliado, pois passa a ver mais claramente tanto a si mesmo, suas próprias necessidades, modos de funcionamento e inclinações, quanto o mundo dentro do qual precisa existir.
Nesse convite para transcender a si mesmo, modificando a maneira como percebe, como atribui sentidos, e como toma suas decisões e se posiciona, aquele homem de outrora, tal como se definia, cristalizado como objeto, é ameaçado de uma espécie de morte existencial, para que possa renascer e se perceber como o ser-aí, como o Dasein, fruto incessante, fluido, relacional e indefinível de sua própria existência singular, mas ao mesmo tempo que esse renascimento traz o potencial da liberdade, da ampliação de possibilidades, da esperança, nota-se também que não há garantias para esse novo ser, como não havia para o anterior.
É perceptível que não se pode vislumbrar simplesmente uma cura para a angústia existencial, mas buscar dotar o sujeito da capacidade de aceitá-la como é e de construir novas formas de significar e de se posicionar diante da própria angústia.
Na psicoterapia existencial, o sujeito é estimulado a perceber que sua forma de dar sentido e significado às próprias vivências e experiências de vida, assim como sua forma de se posicionar diante do mundo e da existência são de sua responsabilidade, dando a ele a liberdade para olhar as coisas de modos distintos.
Deste modo, o sujeito percebe a possibilidade de conferir novos sentidos à própria existência. Essa é a essência da liberdade existencial, uma liberdade de conferir sentido, tal como defendida por Frankl (1981, 1985). Não dotar de sentido nossa própria existência aparece como origem da psicopatologia existencial (Teixeira, 2006; Jacintho, 2019).
Obviamente, sem ignorar variáveis ambientais, sociais, culturais, econômicas etc., o sentido possui a capacidade de regular a minha interação com esses fatores contextuais, regulando meu comportamento objetivo, assim como meu envolvimento subjetivo comigo, com o outro e com o mundo.
Quando o psicoterapeuta existencial encontra seu paciente, deve pressupor que algo em sua relação com a própria liberdade está em xeque. Nesse sentido o terapeuta deve, estrategicamente, assumir uma posição de apoio, ao mesmo tempo em que auxilia seu paciente a progressivamente reassumir as condições para o exercício da própria liberdade.
O que faz a psicoterapia existencial, então, é confrontar a todo o momento o sujeito consigo mesmo e com suas próprias percepções de si e do mundo, auxiliando-o na tarefa de olhar para si mesmo como sujeito responsável por cada uma de suas escolhas. Não para que este se lamente ou se culpe, mas para que perceba que, assim como esteve em suas mãos parte importante do que o trouxe em direção ao sofrimento, está também em suas mãos parte importante do que o fará seguir em frente. E parte da atitude humanista do existencialismo reside exatamente aí, em reconhecer a capacidade e a força humana em enfrentar a própria existência.
Considerações Finais
Diante do que vimos até aqui podemos entender a psicologia e os processos psicoterápicos associados, dentro de um ponto de vista fenomenológico-existencial e humanista, como processos de absoluto respeito à singularidade existencial, de empoderamento do sujeito diante de sua própria jornada, e de reabilitação do exercício da liberdade existencial, sem nunca desconsiderar a dialética constituinte deste que é o ser-no-mundo-com-os-outros.
Em sua empreitada existencial o homem se vê condenado a gerenciar sua liberdade a partir das limitações (biológicas, sociais, ambientais...) que lhe são impostas. Essa dialética que envolve liberdade existencial e contingenciamento ambiental, social e biológico faz com que o sujeito encare suas fraquezas, suas vulnerabilidades, suas frustrações, seus contextos restritivos, mas, ao mesmo tempo, precise tomar decisões concretas e circunstanciadas sobre o que fazer e como se adaptar e se constituir enquanto projeto diante da própria existência e de tudo que lhe é imposto enquanto contingência. Se sua autonomia não é absoluta, sua condenação a fazer algo e a viver as consequências de suas decisões e posicionamentos responsáveis é inescapável.
Lidar com essa dialética, promover alguma reflexão pessoal, auxiliar o sujeito a tomar consciência de seus projetos, potencialidade e limitações, a se posicionar e se empoderar diante dos objetos de sua consciência são parte essencial daquilo que a psicologia e as psicoterapias de orientação fenomenológico-existencial e humanista propõem.
Referências
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Endereço para correspondência:
Marcelo da Silva Alves Pires
Email: professormarcelopires@gmail.com
Recebido em: 19/07/2022
Aprovado em: 03/04/2023
v. 19 n. 37 (2022): Sumário - IGT na Rede, vol. 19, Nº 37. Disponível em http://www.igt.psc.br/ojs