PEREIRA, Fabio Nogueira – “Diálogos com nossas raízes orientais: integrando Gestalt-terapia e psicologia budista no século XXI

RESENHA

Diálogos com nossas raízes orientais: integrando Gestalt-terapia e psicologia budista no século XXI

Dialoguing with our Eastern roots: integrating Buddhist psychology and Gestalt Therapy in the 21st Century

Fabio Nogueira Pereira


GOLD, E.; ZAHM, S. Buddhist psychology & Gestalt therapy integrated: psychotherapy for the 21st century. Portland, OR: Metta Press, 2018.

Buddhist Psychology & Gestalt Therapy Integrated – Psychotherapy for the 21st Century (GOLD; ZAHM, 2018), cujo título faz uma alusão a Polster e Polster (1974), propõe diálogos entre as tradições gestáltica e budista, retomando conceitos fundamentais de ambas as tradições e dando igual importância a suas contribuições em doze capítulos organizados em quatro partes. Os autores organizam as duas primeiras partes, com três capítulos cada, a fim de descrever em linguagem acessível e detalhada pressupostos e fundamentos teóricos, bem como aspectos práticos e metodológicos, primeiro sobre a psicologia budista e a seguir da Gestalt-terapia. A terceira parte do livro discute convergências epistemológicas com uma Gestalt-terapia orientada pela perspectiva de campo e implicações clínicas deste diálogo, culminando na ênfase dada às práticas meditativas como tecnologia clínica no nono capítulo e seu papel na formação de terapeutas ao auxiliar na percepção de si, ampliação da awareness e desenvolvimento da habilidade de se fazer presente na experiência pessoal e frente ao outro no décimo capítulo. Na quarta parte, composta de dois capítulos, a argumentação dirige o leitor a novos direcionamentos para a psicoterapia no século XXI, como a retomada de uma perspectiva de campo, a necessidade de integração da experiência vivida, e discussões sobre aspectos processuais de self e da autorregulação. No capítulo onze, mais especificamente, os autores descrevem como a Gestalt-terapia pode aprender com a psicologia budista, situando pilares de ambas as tradições, tais como Fenomenologia, Teoria de Campo, funções de Self, Dialogismo, autorregulação, impermanência, apego e sofrimento, e finalizam o livro no décimo segundo capítulo com alguns apontamentos para um treinamento integrado, considerando os diálogos epistemológicos e teóricos oferecidos ao longo da obra e os benefícios da meditação dentro e fora da terapia, bem como para o treinamento de terapeutas, apresentados ao longo do livro. Importante destacar que nestes últimos dois capítulos, os autores ilustram algumas discussões com transcrições de casos clínicos.

A obra recomendada se pretende uma leitura introdutória sobre o assunto e parece atender ao psicoterapeuta que chega a esta encruzilhada tanto através de um caminho budista quanto por um gestáltico. Gold e Zahm (2018) referenciam as obras utilizadas para alinhavar sua tessitura teórica e técnica e oferece ao final da obra uma lista de sites para que o leitor possa ampliar o contato com distintas visões budistas e possíveis entrelaçamentos com a psicologia ocidental. Os autores citam fontes das tradições Theravada, Zen e Vajrayana no texto e declaram sua experiência e alinhamento com a primeira logo na introdução do livro. O posicionamento dos autores se faz importante, uma vez que não é necessariamente claro ao público geral a variedade de compreensões e práticas dentro do espectro filosófico e religioso budista.

Após surgir na Índia, o budismo é transmitido para outras regiões da Ásia, adotando novas características e sofrendo alterações em conceitos e concepções secundárias resultantes das discussões filosóficas e teológicas de autores diversos, bem como de aspectos socioculturais locais (HARVEY, 2019). São quatro os ensinamentos de Sidarta Gautama que fazem parte de todas as escolas budistas (HARVEY, 2019; SUZUKI, 2017; VERAS, 2005): a) dukkha, a insatisfação é inerente ao ciclo da vida; b) samudaya, a originação da insatisfação com nossa atitude de apego a coisas, ideias e hábitos; c) nirodha, a insatisfação pode ser cessada com o abandono do apego; e, d) marga, o exercício do Caminho Óctuplo possibilita cessar a insatisfação.

Harvey (2019) detalha a diáspora budista e seus desdobramentos. A comunidade original se separa em escolas com entendimentos e práticas distintas – ainda que mantenham os quatro ensinamentos mencionados acima – sobretudo em razão de dois cismas no IV e III séculos AEC. Os ensinamentos indianos foram levados ao sul da Ásia e mantidos registrados no Canone Pali, originando o movimento Theravada. Nesta tradição a iluminação somente pode ser alcançada dentro de uma vida monástica, muitas vezes reservada apenas a homens. Ao se dirigir ao sudeste asiático, a doutrina Mahayana se desenvolve geograficamente tanto ao sul como ao sudeste asiático, com origem no século I e se tornando dominante no Centro-Leste do continente. Seu pilar principal é que todos podem obter a iluminação é uma única vida ao se compreender a verdadeira natureza da realidade. Tal conquista pode ser obtida pela adoção de preceitos éticos como sabedoria, compaixão, alegria empática e equinimidade. Contudo, tal tradição enfatiza mais este desenvolvimento pessoal do que a iluminação propriamente dita, mesmo que ela seja possível somente através do desenvolvimento da sabedoria. O Zen budismo, uma das escolas japonesas e originada a partir da escola chinesa Ch’na, faz parte do conjunto de tradições compreendidas dentro do movimento Mahayana e enfatiza a prática meditativa sentada, bem como a manutenção da atitude meditativa nas atividades cotidianas. A primeira escola a surgir no Japão no período feudal do Xogunato foi a Rinzaishu, adotada pelos samurais como metodologia de treinamento psicoespiritual. A Sotoshu se origina a partir da Rinzai e se volta para a população mais ampla neste mesmo período histórico. A terceira escola citada no livro também é considerada uma das linhagens desta tradição, porém com influências do Tantrismo indiano e da religião Bon tibetana, o que lhe confere características doutrinárias e práticas especificas. O Vajrayana, assim como outras vertentes Mahayana, não distingue nirvana e samsara, ou seja, considera a iluminação e a dimensão do sofrimento como duas faces da realidade que são percebidas de acordo com a atitude e a experiência da pessoa a cada momento. Nesta tradição, a entoação de mantras, a prática meditativa e a visualização de deidades são as principais ferramentas para o desenvolvimento dos preceitos que levam à iluminação.

Um aspecto relevante é o afastamento dos autores da tradição gestáltica ao se basearem principalmente na tradição Theravada para as descrições e argumentações ao longo do texto. A Gestalt-terapia é influenciada em sua origem pelas Rinzaishu e Sotoshu, duas escolas do Zen japonês. Essas tradições fazem parte de transmissões de linhagens diferentes, de forma que o leitor que queria um debate teórico mais refinado deverá ser mais atento e procurar outras referências para aprofundar seus estudos. Sugerimos a leitura de a) uma visão mais ampla e que favoreça a compreensão das diversas escolas budistas com Harvey (2019), b) Fulton e Siegel (2016) para compreender a apropriação do budismo pela psicologia ocidental, c) Veras (2005) para um diálogo mais detalhado de aspectos teóricos a partir de um Gestalt-terapeuta brasileiro, e, d) uma perspectiva do gestaltismo japonês com um texto mais simples e direto, e com muitos exemplos clínicos, como em Momotake (2018). Ainda que este reconhecimento textual do alinhamento dos autores com uma linhagem budista diversa possa denotar algum conflito epistemológico na obra, a declaração deste viés por Gold e Zahm logo nas primeiras páginas e a forma como apresentam os conceitos no corpo do texto a partir de aspectos fundamentais budistas não compromete os diálogos propostos.

A Gestalt-terapia emerge na primeira metade do século XX a partir de um novo paradigma humanista que se posicionava criticamente aos dois sistemas psicológicos (Psicanálise e Comportamentalismo) que a antecederam (RIBEIRO, 2012; RUSSO, 2017). Múltiplas filosofias e teorias de base foram utilizadas na sustentação da proposta gestaltista, contudo três pilares se mantiveram desde 1951, ano de publicação do seminal Gestalt Therapy: Excitment and Growth in the Human Personality por Perls, Hefferline e Goodman (1997). Na teoria contemporânea da prática gestáltica consideramos Teoria de Campo, Fenomenologia e Existencialismo Dialógico como fundamentais para nossa abordagem (GOLD; ZAHM, 2018; RESNICK, 2016; RIBEIRO, 2012). Por outro lado, também devemos lembrar que teorias e explicações orientais sobre a realidade e o comportamento fomentaram importantes discussões na psicologia ocidental no último século, inclusive com contribuições para a teoria e a prática na Gestalt-terapia (FULTON; SIEGEL, 2016; GOLD; ZAHM, 2018; GOODMAN, 1991; PEREIRA, 2021; PERLS, 2019; RIBEIRO, 2012).

Talvez, num primeiro momento, o leitor considere o budismo uma prática religiosa institucionalizada e dispersa em culturas variadas que lhe dão matizes diversos. Aliás, a doutrina ensinada por Sidarta Gautama também é vista por autores contemporâneos como um sistema psicológico e não meramente um pensamento de cunho filosófico ou uma pregação religiosa (FULTON; SIEGEL, 2016; RUSILO, 2017). Fulton e Siegel (2016), por exemplo, reafirma o budismo como ciência desenvolvida através de uma metodologia baseada em evidências empíricas e da experimentação direta de diversos praticantes e autores que discutem hipóteses e achados por muitas gerações. Nesta perspectiva, o budismo não pode ser considerado uma religião em sentido estrito, uma vez que não é teista nem ateísta (HARVEY, 2019; SUZUKI, 2017), mas sim um treinamento para perceber a realidade como é (MOMOTAKE, 2018; RUSILO, 2017; SUZUKI, 2017) e oferecer soluções pragmáticas para a cessação do sofrimento (FULTON; SIEGEL, 2016; SUZUKI, 2017).

A Gestalt-terapia notadamente recebeu influência de pensamentos orientais, tais como do Taoísmo e do Zen Budismo, mesmo que não ocorra um aprofundamento da discussão conceitual pelos desenvolvedores iniciais da abordagem e falte referências mais explícitas em Perls, Hefferline e Goodman (1997) e outras obras, tais como em Goodman (1991) e Perls (2019). Além disso, sabemos que Fritz Perls passou dois meses no templo zen budista da escola rinzai Daitokuji em Kyoto no ano de 1962 (KELLOGG, 2014; MOMOTAKE, 2018). Não temos nenhuma indicação nas referências iniciais da Gestalt-terapia sobre a fundamentação em uma escola zen específica e lembramos que o próprio Zen japonês, originado da escola chinesa Ch’an, possui suas próprias subdivisões (HARVEY, 2019).

Poucos são os autores da abordagem gestáltica que se dedicam a discutir atravessamentos teóricos e possibilidades técnicas ou que apoiam formalmente um diálogo estreito da Gestalt-terapia com a psicologia budista e as práticas meditativas na formação de terapeutas (por exemplo, GOLD; ZAHM, 2018; NARANJO, 2005, 2013; e mais especificamente no Brasil, PEREIRA, 2021; PEREIRA; DALGOLBO; SILVA, 2021; ROSMANINHO, 2010; VERAS, 2005, 2013), o que faz do livro de Gold e Zahm um convite à retomada de nossas raízes e diálogos férteis, cuja leitura recomendamos. Cabe aqui uma reflexão à comunidade gestáltica se não recobramos estas raízes pela falta de cuidado dos desenvolvedores originais em nos apontar caminhos (os quais precisamos refazer passo a passo, como em RIBEIRO, 2012), porque consideramos essas influências apenas mais um dos elementos que compõem o fundo contracultural na metade do último século e/ou por adotarmos um posicionamento colonialista no qual consideramos bases epistemológicas somente na filosofia ocidental, minimizando, assim, a importância do Zen e do Taoísmo no delineamento da abordagem.

Referências

FULTON, P.R.; SIEGEL, R.D. Psicologia budista e psicologia ocidental: buscando pontos em comum. In: GERMER, C.K.; SIEGEL, R.D.; FULTON, P.R. (Orgs.). Mindfulness e psicoterapia. Porto Alegre: Artmed, 2016, p. 37-58.

GOLD, E.; ZAHM, S. Buddhist psychology & Gestalt therapy integrated: psychotherapy for the 21st century. Portland, OR: Metta Press, 2018.

GOODMAN, P. Notes from a journal. In: STOEHR, T. (Org.). Nature Heals - Psychological essays of Paul Goodman. Highland, NY: The Gestalt Journal Press, 1991, p. 234-248.

HARVEY, P. A tradição do budismo: história, filosofia, literatura, ensinamentos e práticas. São Paulo: Cultrix, 2019.

KELLOGG, S. Transformational chairwork: Using psychotherapeutic dialogues in clinical practice. New York: Rowman & Littlefield, 2014.

MOMOTAKE, M. The Gestalt path of the mini satori. Mill Valley, CA: Gestalt Institute of San Francisco, 2018.

NARANJO, C. Entre meditação e psicoterapia. Petrópolis: Vozes, 2005.

NARANJO, C. La vieja y novíssima Gestalt: actitud y práctica de un experiencialismo ateórico. Santiago: Cuatro Vientos, 2013.

PEREIRA, F.N. O dedo apontando a lua: experimentando o contato entre Gestalt-terapia e Zen Budismo. Rev. abordagem gestalt., v. 27, n. 1, 2021. doi: 10.18065/2021v27n1.9.

PEREIRA, F. N.; DALGOLBO, C. G.; SILVA, M. O. DA. Revolução budista ou apocalipse zumbi? Discussões sobre mindfulness a partir de uma perspectiva gestáltica. Psicologia USP, v. 32, p. e200146, 2021. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0103-6564e200146. Acesso em: 18 out. 2021.

PERLS, F.; HEFFERLINE, R.; GOODMAN, P. Gestalt-terapia. São Paulo: Summus Editorial, 1997.

POLSTER, E.; POLSTER, M. Gestalt therapy integrated: Contours of theory & practice. New York: Vintage, 1974.

RESNICK, R.W. [GATLA Videos]. (2016, 15 set.). An introduction to Gestalt Therapy theory [Arquivo de vídeo]. Disponível em: https://vimeo.com/ondemand/gestaltfilms/181868433. Acesso em: 31 mar. 2021.

RIBEIRO, J.P. Gestalt-terapia: refazendo um caminho. São Paulo: Summus, 2012.

ROSMANINHO, M. T. Tornar-se terapeuta: a prática da meditação na formação do psicólogo clínico de orientação fenomenológica. 2010.  Dissertação (Mestrado em Psicologia Clínica). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010.

RUSSO, J. Do psíquico ao somático: notas sobre a reconfiguração do self contemporâneo. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, v. 24, n. 1, 2017, p. 157-169.

RUSILO, L. [Enkoji]. (2017, 17 jan.) Budismo não é religião [Arquivo de vídeo]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=MdLT9-CNxts. Acesso em: 31 mar. 2021.

SUZUKI, D.T. Uma introdução ao zen-budismo. São Paulo: Mantra, 2017.

VERAS, R.P. Ilumina-ação: diálogos entre Gestalt-terapia e Zen-Budismo. 2005. Dissertação (Mestrado em Psicologia Clínica). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2005.

VERAS, R.P. A influência do pensamento oriental na Gestalt-terapia. In: FRAZÃO, L.M.; FUKIMITSU, K.O. (Orgs.). Gestalt-terapia: fundamentos epistemológicos e influências filosóficas. São Paulo: Summus, 2013, p. 157-177.



Endereço eletrônico:

Fabio Nogueira Pereira

E-mail:

fabionogueirapereira@gmail.com

v. 19 n. 37 (2022): Sumário -IGT na Rede, vol. 19, Nº 37. Disponível em http://www.igt.psc.br