Por uma clínica da vida vivida: ''Um cotidiano de uma Gestalt-terapêutaterapeuta: a clínica dos pequenos acontecimentos''

Resumo

Resumo: O presente trabalho tem como ponto de partida uma trajetória de mais de 25 anos de prática clínica e de atuação em comunidades e universidades permeada pelo fio da abordagem gestáltica. Ao escolher atuar tendo a abordagem gestáltica como recurso, escolhi também convocar a sensibilidade que transcende a técnica, subvertendo a lógica cartesiana que permeia a sedimentação da psicologia como ciência. Compreendendo o fazer clínico (e o tornar-se clínico) como uma construção artesanal articulada com a vida incluindo desde os engates da graduação, passando pela formação do terapeuta, até a arte de formar outros terapeutas, destaco aqui os desafios cotidianos que emergem dessa prática. A prática clínica em Gestalt-Terapia por seu viés fenomenológico permite-nos a singularidade na intervenção onde cada processo é único e, como tal, deve ser acompanhado em suas nuances e peculiaridades. Não nos é possível prever os desdobramentos de um processo tera pêutico e muito menos garantir resultados. Portanto, essa é uma prática de risco porém fundada na delicadeza. No exercício cotidiano desse ofício de terapeuta, resgato de minha própria história a herança feminina do tecer, mas precisamente, tecer em crochê, formando , uma aliança inusitada entre a repetição e a criação. No crochê, a trança é um ponto básico que permite criar todos os outros pontos. Aqui, nesse trançado utilizarei dois fios: o primeiro chamarei de ‘a clínica dos pequenos acontecimentos”; o segundo nomeio de “driblando as armadilhas do como fazer”. As múltiplas possibilidades de pensarmos a clínica produzem formas distintas de atuação. Porém, esse não é um aprendizado que se constrói sem envolvimento. A prática clínica pode resvalar para uma forma imperativa onde o terapeuta assume o lugar de condutor e não de acompanhante. Mesmo na abordagem gestáltica que não visa essa perspectiva , esse risco pode ser grande. Desta co, aqui, a importância do princípio de simetria nessa prática pois ,se nos posicionarmos como aquele que vai descobrir o que está acontecendo com o outro, faremos uma leitura unilateral, e por que não dizer, ficcional. Uma relação simétrica, nos convoca a “fazer com o outro e não sobre o outro”, a criar “intervenções que nos ativem a todos”, a tomar aqueles que são nossos clientes e pesquisados “como especialistas e parceiros no processo de construir o conhecimento” (Moraes, 2010, p. 41-42). Fazer clínica é diferente de aplicar conceitos. O fazer exige uma imersão, um embate, uma ação que transborda a intelectualidade e se realiza no campo. No fazer, o movimento se dá na totalidade, ou seja, num campo de afetações. Logo, terapeuta e cliente, afetam-se mutuamente numa reflexidade que constitui uma potência distribuída nesta ação. Na verdade, a versão de que sabemos deve vir acompanhada do inverso, isto é da proposição de que nada sabemos. Muitas vezes na ânsia dos grandes acontecimentos , desprezamos os pequenos encontros. Relembrando a arte das crocheteiras que povoam minha ancestralidade, revejo que no crochê para iniciantes, dar uma laçada é a manobra que fundamenta o ponto básico, no caso, a trança. Pode parecer algo muito simples, mas, como é comum às artes manuais, exige uma sutileza que se instala entre a firmeza de segurar a agulha e a leveza de realizar o movimento para trançar com este instrumento. Assim, prestar atenção nos pequenos movimentos pode nos dar mais sustentação para intervir. No movimento do crochê há uma repetição de pontos, porém se eles forem mecanizados e enrijecidos, o risco de errar e de o crochê “embabadar”(perder a forma) é grande. Portanto, o trabalho é uma repetição mas, como dizem as crocheteiras, é preciso senti-lo, perceber que ele está crescendo, vê-lo aparecer, ou melhor, vir a ser a peça acabada. A paciência é essencial, o tato é necessário, a atenção é fundamental e a capacidade de contemplar emerge desse ato de tecer a peça. Assim, os pequenos acontecimentos promovem o diálogo e a rotina sustenta o encontro, mas nada acontece duas vezes. Mas como transformar em método uma artesania vinda da dimensão sensível? .Há uma cobrança que ronda a nossa prática que pode se constituir numa grande armadilha: o “Como fazer?” Deparo-me com esse questionamento constantemente e, geralmente, percebo que essa busca se concentra nos recursos externos: métodos, técnicas, truques que nos lancem às intervenções bem sucedidas, certeiras, que nos capacitem e nos instrumentalizem para situações específicas. Mas o que fundamenta nossa prática se não o risco de investigar? E o que significa isso? Considerando a relação em psicoterapia como um processo, a ação de perguntar deve seguir o fluxo dos acontecimentos. Despret (2011), aponta para a importância de realizarmos perguntas int eressantes no desenrolar da investigação. A prática clínica exige essa sensibilidade. A pergunta interessante não pode interessar apenas ao terapeuta. É preciso, sobretudo envolver o cliente. A pergunta, então, deve ser interessante também para ele. Saber perguntar, não é ter o poder ou o dom da sabedoria, mas sim deixar a pergunta emergir do campo, da relação. Não há um manual de perguntas geniais para serem repassadas. Mas elas realmente podem ser produzidas no campo, no acontecimento, no evento local. É nesse movimento que é possível a transformação. Considerando o exposto, podemos pensar numa clínica dos pequenos acontecimentos e da pergunta interessante, a que inclui o cliente, perpassa o psicoterapeuta , afeta a relação. Poderes e saberes assim distribuídos poderão, então, atuar como potência para os implicados. Isso não só resgata a noção de campo integrada a nossa prática como também reafirma a noção de relação e totalidade tal e qual nos propôs Perls (1977; 1981) em sua perspectiva visionária. Palavra 1: Gestalt terapia Palavra 2: Prática clínica Palavra 3: Formação de terapeutas Modalidade de apresentação: Mesa-redonda Área de concentração: Clínica e supervisão Titulo da mesa: Por uma clínica