Dislexia e disortografia: a
importância do diagnóstico
Vania
Pavão
Fonoaudióloga
Professora
do Curso de Graduação em Fonoaudiologia/UFRJ
Membro da AND – Associação Nacional de Dislexia
A dislexia é um transtorno de origem
neurológica que dificulta a aquisição da leitura, e conseqüentemente da
escrita, trazendo prejuízos para o desempenho escolar, social, profissional e
afetivo do sujeito disléxico. Acomete cerca de 10% da população (Shaywitz,
1998; apud Santos & Navas, 2002), mas quando identificada e tratada desde
cedo, é possível dar condições ao disléxico de criar estratégias para lidar com
esta dificuldade, superando alguns obstáculos e minimizando suas conseqüências.
Neste sentido, o objetivo deste texto é discorrer brevemente sobre alguns
aspectos da aprendizagem de leitura e escrita para que profissionais de
diferentes áreas que trabalhem com crianças, seja na educação infantil ou no
ensino fundamental, ou mesmo com adultos, possam estar alertas para possíveis
sinais de dificuldade e sabendo orientar este sujeito adequadamente.
Em primeiro lugar, cabe destacar o importante
papel do desenvolvimento da linguagem. Quando falamos de leitura e escrita,
estamos falando de linguagem. Por que? Porque a linguagem é um sistema
simbólico de representação da realidade que pode se expressar por várias
modalidades: gestual, oral, escrita. O homem, ao longo de sua história social,
criou códigos para expressar determinados significados: o gesto de bater palmas
significa aprovação; um grito de socorro significa situação de perigo; a letra
H na porta de um banheiro significa acesso permitido ao sexo masculino. Dominar
o código escrito pressupõe, então, dominar a possibilidade de simbolizar, que,
por sua vez, como bem nos ensinou Vygotsky (1984), se constrói gradualmente,
conforme a criança avança no domínio de várias tarefas: imitação de gestos
simbólicos, brincadeiras de faz-de-conta, desenho e, é claro, a fala (ver
quadro I).
O domínio da escrita é o resultado de
um longo processo de organização da capacidade de simbolizar, ou seja, é o
resultado do desenvolvimento da linguagem/fala, que permeia a construção de: -
gestos
significativos -
brincadeira
de faz-de-conta -
desenho -
escrita (Vygotsky,
1984) |
Quadro I – Relação
Linguagem/Escrita para Vygotsky
Vários estudos (Santos & Navas, 2002;
Snowling & Stackhouse, 2004) apontam uma correlação significativa entre a
dislexia e crianças que apresentaram atraso na aquisição da fala, sendo este,
então, apontado como um fator de risco para a primeira. Isto não se dá por
acaso. Um dos componentes fundamentais para o desenvolvimento da fala é também
apontado, atualmente, como o componente mais afetado na dislexia: a consciência
fonológica (Capovilla & Capovilla, 2000; Morais, 1996). E o que vem a ser a
consciência fonológica?
A consciência fonológica pode ser definida
como a capacidade de se perceber que a fala pode ser decomposta em unidades
menores (frases, palavras, sílabas e letras) e que estas unidades podem ser
manipuladas para se formarem novas palavras e para se criarem novos sentidos.
Esta noção é fundamental para o domínio da enunciação das palavras, bem como
para estabelecer o sentido desta enunciação. Observe estes exemplos: lá tá
quente/lata quente; sábia/sabiá; topa/pato; parto/prato;
gato/gota. Pequenas modificações fazem toda a diferença e exigem uma
aprendizagem refinada e trabalhosa. Até dominarem o sistema fonológico da sua
língua materna, crianças pequenas fazem um grande exercício de
discriminação/experimentação. É comum ouvirmos crianças falarem “soverte”
no lugar de “sorvete”. Este fato demonstra que é preciso não só
identificar a presença de um som, mas ordená-lo corretamente, ou seja, perceber
o valor sonoro que ele adquire naquela palavra. Esta tarefa põe em jogo
diversas funções, como atenção, percepção e memória.
Pesquisas recentes com técnicas de
imageamento cerebral têm confirmando que o córtex tem áreas especializadas em
determinadas funções, onde elas são recebidas, analisadas e armazenadas. O locus
cortical para a informação fonológica, também chamado de léxico fonológico,
ficaria na porção posterior do giro temporal superior, conhecida como área de
Wernicke (Lent, 2001). Neste local abrigamos um estoque de informações fonológicas
que nos permite identificar e acessar o significado das palavras que recebemos
pela via auditiva. Quando aprendemos a ler, vamos formar um estoque similar
para o reconhecimento das palavras que recebemos pela via visual, sendo chamado
de léxico ortográfico. Mas, uma vez que a escrita se remete à forma como cada
língua se refere a um objeto, tem que haver uma correlação entre a imagem
recebida visualmente com seu correspondente sonoro arquivado no léxico
fonológico. Dito de outra forma, teremos que realizar, em nível cortical, a
associação grafema-fonema. Esta associação é a base do princípio alfabético,
descoberta fundamental que a criança deve realizar ao se apropriar do sistema
de escrita, devendo correlacioná-lo com seu sistema de fala.
Fala 1 – Escrita 1 – Escrita 2 – Fala 2
Mary Kato (1986) |
Quadro II – Correlação entre fala e escrita
Vários autores enfatizam a correlação entre a
fala e a leitura. Kato (1996), apresenta um esquema muito simples e elucidativo
(ver quadro II). FALA 1 representa a fala que a criança tem desenvolvida antes
de iniciar a educação formal de leitura e escrita. Não podemos esquecer que, em
geral, a criança tem em torno de 4 anos de experiência de fala quando entra na
alfabetização. Isto significa um longo tempo de treino e apropriação do sistema
fonológico da sua língua na modalidade
auditiva/oral. Quando se inicia o processo de aquisição de leitura, a criança
vai dar uma nova roupagem para este sistema, ou seja, vai se apropriar de um
novo código, agora visual/gráfico. Neste momento se inicia a fase da ESCRITA 1,
que tem por característica o desenvolvimento de uma escrita baseada na
oralidade, que já está estruturada. Algumas características comuns deste
período são a criança falar em voz alta ao tentar ler ou escrever e também
escrever da forma como se fala (ex: muinto, filio, penti, gatu, etc). Aos
poucos a criança vai percebendo que a escrita não é um espelho da fala, que
possui regras próprias, entrando no estágio da ESCRITA 2. O aprimoramento da
leitura/escrita e o contato com a gramática da língua, vai oferecer ao
indivíduo outras experiências lingüísticas que a informalidade da língua oral
não apresenta. O resultado deste processo é o aprimoramento da fala a partir do
enriquecimento adquirido via leitura/escrita, com expansão do vocabulário, de
conhecimentos e domínio das formalidades da língua.
Podemos observar, com este esquema, como a
base anterior de linguagem é extremamente importante para o desenvolvimento da
leitura/escrita e como, a partir daí, tornam-se inter-relacionadas. Esta também
é a visão da Adams (1991, apud Santos & Navas, 2002), ao desenvolver um
Modelo de Processamento da Linguagem escrita (ver quadro III).
|
Quadro III – Modelo de
Processamento da Linguagem Escrita
Neste modelo, podemos observar
que existe uma integração, que acontece em nível cortical, de 4 processadores
diferenciados: fonológico, semântico, ortográfico e contextual. O processador
fonológico analisa e armazena o componente fonológico das palavras, de base
auditiva. O processador ortográfico, o componente gráfico, de base visual. O
processador semântico fornece o acesso ao significado das palavras
identificadas e o processador contextual escolhe o melhor significado dentro de
um contexto específico. Por exemplo: Ao receber a expressão “Que bela
manga!”, seja via auditiva ou visual, vai haver uma busca pela
identificação destas palavras nos processadores fonológico ou ortográfico.
Quando há o reconhecimento daquelas palavras, elas são correlacionadas com o
processador semântico, para dar-lhes significado. Mas, neste caso, somente
ativando o processador contextual poderemos saber se trata-se da manga fruta ou
parte de uma vestimenta.
É interessante notar que, quando todo este
sistema está funcionando adequadamente, forma-se um triângulo que
inter-relaciona os processadores fonológico, semântico e ortográfico. Isto
significa que, ao recebermos uma informação auditiva, imediatamente acessamos
seu significado e sua representação ortográfica. Ao recebermos uma informação
visual, acessamos o significado e a representação fonológica. E ao pensarmos em
um objeto, por exemplo, imediatamente acessamos suas formas fonológica e
ortográfica. Então, entrando por qualquer dos três vértices deste triângulo,
deveremos ser capazes de articular todo o sistema.
Precisamos lembrar que, ao início da
alfabetização, o processador ortográfico ainda não está formado, devendo então
se estruturar. Caso haja problemas anteriores de linguagem, afetando os níveis
fonológico e/ou semântico e contextual, estas articulações estarão
prejudicadas. Como conseqüência, o processador ortográfico vai se desenvolver de
forma ineficiente e a correlação fonema-grafema não garante a estabilidade
necessária ao bom desenvolvimento de leitura/escrita. Isto é basicamente o que
acontece com o disléxico. Com o sistema fonológico deficiente, a correlação
letra-som não consegue ser fixada e armazenada de forma eficiente. Decorre daí
uma série de sintomas típicos da dislexia: leitura lenta, silabada, fazendo
confusão entre palavras similares, parecendo adivinhar palavras ao invés de
ler, sem entonação adequada nem
respeito à pontuação. O resultado deste
fato é o prejuízo na compreensão do material lido, nas tarefas de interpretação
de texto, na leitura de enunciados.
L = D x C
(Capovilla, Macedo &
Charin, 2002) |
Quadro IV – Relação entre
leitura, decodificação e compreensão
Como vemos, estabelecer uma eficiente
correlação letra-som é fundamental para o sucesso na leitura. Podemos dizer,
então, que a leitura pressupõe a transformação de representação gráfica em
representação fonológica, ou seja, a decodificação. Muitas pessoas podem se
perguntar se enfatizar a decodificação não levaria o processo de aquisição de
leitura a uma tarefa mecânica de domínio de um código. Respondo que não, pois
se a decodificação não for eficiente todo o resto estará prejudicado. Segundo
Capovilla, Macedo & Charin (2002), podemos representar a operação da
leitura por meio de uma fórmula matemática, na qual L representa leitura, D, decodificação
e, C, compreensão (ver quadro IV). Note-se que é uma operação de multiplicação,
o que significa que se qualquer um dos componentes for igual a zero, o
resultado final também é zero. Podemos então concluir que lemos para nos
apropriarmos dos conhecimentos acumulados pela humanidade, para sonhar, para
ter prazer, para buscar informações, para nos distrairmos, ou seja, lemos para
compreender. Mas sem a decodificação não há leitura. Ler não é o mesmo que
aprender a ler, onde efetivamente um código precisa ser aprendido.
Em contrapartida às dificuldades de leitura,
temos as dificuldades na escrita, chamadas de disortografia. Caracteriza-se
pela dificuldade em fixar as formas ortográficas das palavras, tendo como
sintomas mais típicos a substituição/omissão/inversão de grafemas (gueijo,
pesamento, pocerlana), aglutinações ou separações indevidas de
palavras (derrepente, de pois), persistência de um padrão inicial de
escrita, ancorado na fala (bolu, priguiça), dificuldade em fixar regras
(gitarra, forão, canpo, tore) e padrões ortográficos irregulares (dice,
sensassão), dificuldade na produção de textos.
A escrita geralmente traz mais dificuldades
do que a leitura, pois enquanto esta implica recepção, ou seja, o modelo
gráfico já está pronto e é oferecido externamente, aquela implica produção, ou
seja, o modelo gráfico tem que estar construído internamente, no processador
ortográfico, para ser resgatado pela memória e reproduzido. Para Morais (1996),
esta é uma das justificativas para o fato de que pessoas com dificuldade da
aprendizagem de leitura e escrita, nas séries iniciais tem muita dificuldade na
leitura, mas, em séries mais avançadas, esta dificuldade fica mais visível na
escrita.
Vemos, então, que leitura e escrita não são a
mesma coisa, mas são operações muito relacionadas entre si e com todo o
substrato de linguagem, confirmando a importância do processamento fonológico
no sucesso ou fracasso de leitura. Shaywitz et all (1998), realizaram pesquisas
com sujeitos disléxicos e não disléxicos, analisando o padrão de ativação
cortical destes por meio de ressonância magnética funcional em tarefas que
tinham uma demanda crescente de análise fonológica. O resultado demonstrou que
os disléxicos apresentavam uma sub-ativação nas regiões posteriores (área de
Wernicke, giro angular e córtex estriado), justamente as áreas implicadas em
realizar a análise fonológica das palavras e transcodificar letra em som. Em
contrapartida, estes sujeitos apresentavam uma sobreativação em uma região
anterior (giro frontal inferior). Estes resultados apontam para duas
conclusões: primeira, que existe um substrato neurológico para a dislexia e,
segunda, que a eficiência do processamento fonológico é determinante.
As dificuldades na aprendizagem de leitura/escrita
são muito diversas. Nem toda dificuldade de leitura é uma dislexia e o
diagnóstico deve ser feito por profissional experiente. Em muitas situações, as
dificuldades escolares acarretam uma série de outros problemas, como o
sentimento de fracasso, a frustração, o isolamento, a depressão, a
agressividade, o desinteresse, a desatenção. É importante identificar quando
existe uma dificuldade de linguagem e/ou leitura/escrita para que o sujeito
receba o tratamento adequado, independente de ser ou não uma dislexia. Sendo
uma desordem de origem neurológica, não existe cura para a dislexia, mas seus
efeitos podem ser trabalhados e minimizados. Como aponta Frank (2003),
psicólogo educacional e também disléxico, o caminho a ser trilhado é
trabalhoso, mas, com o apoio adequado,
pode-se e deve-se ir atrás de seus sonhos e ser feliz.
Bibliografia:
- Capovilla, A. & Capovilla, F. Problemas de Leitura e Escrita.
São Paulo: Editora Memnon, 2000.
- Capovilla F., Macedo, E. C. & Charin, S.
Competência de Leitura. In: Santos, M. T. M. & Navas, A. L. G. P. (org) Distúrbios de Leitura e Escrita:
Teoria e Prática. São Paulo: Editora Manole, 2002.
- Frank, R. A Vida Secreta da Criança com Dislexia.
São Paulo: Editora Mbooks, 2003.
- Lent, R. Cem Bilhões de Neurônios: Conceitos Fundamentais de
Neurociência. São Paulo: Editora Atheneu, 2001.
- Morais, J. A arte de Ler. São Paulo:
Editora Unesp, 1996.
- Santos, M. T. M. & Navas, A. L. G. P. Distúrbios de Leitura e Escrita:
Teoria e Prática. São Paulo: Editora Manole, 2002.
- Snowling, M. & Stackhouse, J. Dislexia, Fala e Linguagem.
Porto Alegre: Editora Artmed, 2004.
-
Vygotsky,
L. S. A Formação
Social da Mente. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1984.