Conversando com Meus Botões...
Jean Clark Juliano
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Sempre que alguém nos procura, ficamos atentos
ao fato de que ele não vem desacompanhado, mas que traz na sua bagagem todo um
conjunto de eventos, personagens e visão de mundo que representam os tempos em
que ele vive, e, portanto, nós vivemos. A pessoa é o resumo da cultura atual. E
nós também. O que eu quero dizer com isso é que devemos estar conscientes da
impossibilidade de sermos objetivos em nossas ponderações.
Nós também, por melhores que sejamos, estamos
imersos e sujeitos às oscilações da nossa cultura.
Somos antigos e ao mesmo tempo,
contemporâneos.
Hoje fico me questionando: E esta pessoa, vem
em busca de que? O que faz com que nos escolha? Qual é a imagem que emana de
nós mesmo sem que precisemos falar ou fazer algo? O que a faz imaginar que nós
temos a oferecer o que ela vem buscar?
O que nos faz ficar indignados? Ou
apaziguados? O que consideramos ser saudável? Ou normal? Como é o homem que a
sociedade espera que ajudemos a construir? Que qualidades e talentos ele
precisa desenvolver?
Quais são as nossas crenças? Quando aceitamos
trabalhar com um cliente, qual é a ideologia que norteia o rumo que tomamos?
Qual é o nosso critério de felicidade?
Qual é a tarefa da Psicoterapia nos tempos
atuais?
Diante de alguns clientes, hoje a imagem que
eu tenho é a de um surfista, capaz de enfrentar muitas ondas, levando muitos
tombos, bebendo muita água, mas em eterno movimento, fazendo o possível para
permanecer vivo, cavalgando a onda.
Às vezes fico em dúvida se aquilo que estamos
oferecendo é o que realmente é necessário.
Vou compartilhar com vocês alguns pedaços de
história vivida com o Marcelo.
Foi só depois de uma longa negociação ao
telefone que conseguimos um horário em comum... Comportamento que outrora podia
ser entendido ou interpretado como sendo resistência...
O fato é que ele não tinha tempo mesmo...
Ao recebê-lo no consultório, vejo um jovem
bonito, de terno e gravata, trazendo consigo ícones de nossa cultura atual: a
pasta com o notebook, e o telefone celular na cintura...
Ele começa querendo negociar que suas sessões
sejam em dias e horários alternados, para que não se forme um padrão, que
poderá ser percebido pelo chefe...Imagine se ele descobre que Marcelo está em
terapia... Além disso, questiona se este formato de trabalho do modo que eu
proponho funciona. Não será melhor ser atendido quando tiver uma questão
importante para lidar, e aí ficar trabalhando até chegar a um bom termo com
essa questão?
Pergunta também a respeito de minha orientação
teórica, de onde obtive minha formação, e o que eu conheço do mundo
empresarial. E ao relatar alguma situação vivida, tem muita vontade de saber
minha opinião rapidamente transformando em um “case”, um estudo de caso, como é
de seu hábito no trabalho. E de nada
adiantam as evasivas tradicionais...(do tipo devolver a questão...) Quer
aprender a ter muito claras, nas próprias mãos, suas dificuldades...
É muito aplicado também com a sua terapia, que
ele chama de consultoria...Um dia ele chega muito deprimido por haver rompido
um namoro de algum tempo. Foi o seu primeiro relacionamento afetivo mais
importante. Parece que seu mundo
desabou.
E se espanta, não se reconhecendo. Afinal de
contas, ele é tão racional, o que é isso? Logo agora, vai ficar assim?
Justo na época de provas do seu ultimo
semestre do curso superior? Ele não
pode, de forma alguma, tirar menos de 7,0 para não manchar seu curriculum...
Começa a me contar que seus colegas estão aborrecidos
com ele e acabam colocando-o de lado.
Pelo fato dele estar sempre ocupado, pelo fato de ele jamais ter aceito
um convite festas, para uma cerveja e que agora, que vai haver a formatura, ele
não se dispõe a participar...
Ele está sempre tão envolvido em seus
projetos, que não dá tempo para mais nada!
No momento, está fascinado, fazendo um estágio
numa multinacional. Nos intervalos, faz
tradução para ganhar um dinheiro extra. Tempo, para ele, é mercadoria em falta.
Lazer, então, nem se fala. Está
angustiado. Já tem 23 anos e ainda não
comprou um imóvel para si próprio!
Ao falar em seus projetos profissionais ele
conta que seu objetivo é ser presidente de uma empresa antes de completar 30
anos.
Fico surpresa, parece brincadeira, mas não
é. É sério. Me dá uma vontade de confrontá-lo, de brincar com ele,
perguntando o que ele vai fazer de si mesmo nos próximos 60 anos de sua vida?
Daí, muito claramente ele me conta seu
principal objetivo ao fazer terapia.
Quer que eu faça uma lista de todos os seus defeitos para que possamos
trabalhar neles, para que consiga alcançar seus objetivos... Acha que se puder
fazer tudo isto logo, tira este problema da frente, vai poder juntar dinheiro e
ter uma vida folgada. Podendo escolher
um novo tipo de vida. É isso o que ele quer.
E é aí que começo a questionar a validade de
tanta correria, que só lhe aumenta a solidão, deixando a porta aberta para uma
cruel sensação de vazio. E é justamente
isso o que ele quer evitar. Só não percebe (e talvez nem tenha vivido o suficiente
para se dar conta) de que um caminho leva a outro, que leva o outro, e assim
sucessivamente, que não tem volta.
Durante um tempo, pudemos ir trabalhando,
focalizando um pouco cada questão, quando um dia ele chega feliz e me conta que
assinou contrato com outra empresa no Exterior. Um contrato muito vantajoso, diz ele, vai ganhar bem e onde ele
abdica de todos os finais de semana e de férias por dois anos!
Mas terá ao seu dispor todos os recursos de
comunicação. Telefone, fax, e-mail. À
vontade! Casa e comida não são problema! Mas deve providenciar um colchonete
que ficará guardado debaixo de sua escrivaninha, porque às vezes terá de dormir
lá na empresa mesmo.
Confesso que com esse eu me atrapalhei. Não
parava de me espantar. Fico me questionando o porque da eleição deste tipo de
vida? Em que consiste seu projeto heróico? A quem é que ele quer ou precisa
mostrar seus “troféus de caça” ?
Agora vem o pior. Eu, que considerava este comportamento dele como sendo pessoal e
isolado, descubro que toda uma geração está nesta trilha também. Fico me
indagando qual será a motivação que os move? Dinheiro? Status? Imagem? Fazer
parte de um grupo seleto que detém para si um conjunto de informações
privilegiadas?
É aqui que eu peço auxilio.
Estou diante de um problema: Este tipo de vida
é radicalmente contra tudo o que eu aprendi a considerar saudável, em termos de
mente e corpo. E fico perplexa, sem saber por onde começar...
Quando ouso questionar, a resposta que recebo
é que o mundo está muito competitivo, e que estes empregos são muito
cobiçados... E então olham para mim, com um jeito condescendente, até com uma
certa dose de pena... Daquele jeito que a gente olhava para a avó, que sempre
recomendava levar um casaquinho, porque o tempo ia mudar...
Conversando com meus botões:
Estes novos tempos têm me trazido a
consciência da riqueza de mudanças e questionamentos. Parece que muito daquilo que eu tinha como certeza não vale para
os dias de hoje. Que a Verdade é transitória! Percebo um mundo em transição,
que ainda não consigo nomear com clareza, tendo presente apenas a sensação da
rapidez fantástica da passagem do tempo.
Mas para que vocês entendam do que estou
falando, deixe-me fazer um contraponto contando algumas histórias de minha
geração: Peço toda a paciência e atenção.
Sou de uma geração que pode ser taxada de
romântica, mas que se insurgiu contra a ditadura do excesso de consumo, contra
uma rigidez de costumes, contra um autoritarismo esclerosante que aniquilava
qualquer tentativa de criatividade, de experimentação, e o que dizer então de
liberdade...
O refrão em voga era “Faça amor, não faça a
guerra”.
Os nossos corpos foram libertados de suas
amarras. Tecidos feitos de plástico, roupas, soutiens, cintas e outros arreios
foram queimados em praça pública. A
moda de então estava de acordo com o fluir do corpo. A roupa era singular,
colorida, ficava solta, tinha movimento, sempre convidando à dança.
Hoje, apesar de tudo o que se fale em termos
de liberdade, o que vemos em todos os lugares são pessoas uniformizadas. Todos
de preto, homens e mulheres. Roupa curta bem colada no corpo amarrando os
movimentos. Sapatos de plataforma, altíssimos, constituindo-se no paraíso dos
ortopedistas. E é absolutamente indispensável que tudo seja proveniente de
griffes famosas.
Fomos motivados a voltar ao simples, a desejar
e possuir somente aquilo que nos fosse necessário.
Pensando e agindo desta maneira havia uma
atitude diferente em relação ao trabalho.
Era uma época em que se podia escolher o ofício, com a condição de que o
mesmo serviria para a realização pessoal. Havia a possibilidade de escolha. Se
aquela escolha nos fizesse ganhar menos, mas estávamos felizes, então nos
organizávamos para gastar menos. Os critérios fundamentais eram a felicidade e
a independência.
Foi também nesta época que surgiu com toda a
força o movimento da Nova Era, trazendo consigo um profundo respeito e também
retorno à Natureza.
Hoje a ideologia da integração com a Natureza,
respeitando-a e com ela aprendendo a levar a vida de uma maneira mais rica e de
acordo com um ritmo espontâneo, abrindo espaço para a criação, está sendo
esquecida e desvalorizada. As
motivações financeiras se constituem num argumento mais forte em todas as
decisões.
Acreditávamos
que a mudança social, a grande revolução proposta, se iniciava pela busca
individual pela própria alma. O grande
heroísmo consistia no contato vibrante com a realidade pessoal. Para depois aos
poucos, ir aumentando a roda. Chegando por essa via ao social.
Ser terapeuta
então era cuidar para que nada interrompesse tal busca. Era interromper a interrupção. Cuidando do
campo terapêutico, para que o cliente pudesse dar seu mergulho em direção ao
autoconhecimento.
Hoje são raras as pessoas com capacidade de voltar-se
para dentro de si próprias buscando inspiração, levantando os próprios recursos
ou significado para a vida.
As pessoas que nos chegam hoje vêm sofridas,
sem saber o que estão buscando.
Precisam começar do começo. Aprendendo a ver, ouvir, saborear aquilo que
está bem diante de si; Descobrindo seus recursos. Buscando força para o
enfrentamento perplexo de um mundo em que não existem parâmetros estáveis e
claros quanto aos rumos a serem tomados. A estabilidade é mal vista. Fica a imagem de alguém acomodado, que não
tem a agressividade para ir ao mundo, experimentando muitas possibilidades, com
um leque aberto de opções. Mesmo quando parece que temos alguma bússola, é
freqüente sentir a falta de chão debaixo de nossos pés.
Havia a crença que com o foco necessário, com
uma real intenção e uma impecável determinação seríamos capazes de construirmos
a nós mesmos, a caminho de um crescimento pessoal. Aquietando todos os ruídos, num momento de paz, apareciam símbolos,
imagens, que funcionavam de entradas para uma energia especial, que habitava um
espaço além de nós mesmos. No
território do sagrado.
Hoje, os paradigmas que surgem são cambiantes.
Em outros tempos, a dedicação a uma causa, estudo ou profissão, era um critério
básico para o sucesso pessoal e profissional. O que se busca hoje é o exercício
de uma certa “esperteza” que corta atalhos... Hoje percebemos uma
dessacralização de tudo que a nossa geração julga ou julgou serem valores
incontestáveis.
O nosso espelho eram olhos amigos e amorosos
em que cada pessoa podia se ver confirmada e aprovada em sua singularidade,
sentindo-se tão mais perfeita quanto mais parecida consigo mesma.
Hoje, o que consegue ser valorizado é aquele
que se mostra sempre de modo extrovertido, que a todo o momento está vendendo a
própria imagem, empurrada pela propaganda, que nós bem o sabemos vende
quimeras, não produtos. Que tem
múltiplas atribuições, fazendo do seu dia uma correria desabalada, mostrando-se
capaz de “surfar” acima de todas as ondas sem se deixar comprometer com
nada. Se existem duas palavras que são
temidas e banidas hoje na nossa sociedade, são compromisso e intimidade.
Naqueles tempos a ideologia valorizava o
compromisso e intimidade. A
possibilidade de compartilhar momentos de vida, muitas vezes tornava o fardo, a
dor, o desencanto mais leves por serem divididos com pessoas amigas. E elas
muitas vezes, não tinham nenhuma idéia do que poderiam fazer para ajudar, mas
ficavam presentes. E a presença era o fundamental.
Tudo hoje ocorre numa rapidez estonteante, e
de maneira muito intensa, sem tempo de preparação ou reflexão, sem que se possa
escolher, discriminar aquilo que é nutritivo daquilo que é tóxico.
Acontecimentos importantes e rituais básicos
são esquecidos e desconsiderados, banalizando relações e realizações e sempre
em busca do próximo evento, daquilo que ainda está por vir. Não pela existência de algum projeto
consistente, mas infelizmente pelo consumo do “novo”. A ênfase no aqui e agora é confundido pela apreensão daquilo que
é imediato, do já.
Lembro-me da época em que havia estranheza ao
ver incluídos na formação do terapeuta trabalhos corporais, tai chi, yoga,
massagem, dança, meditação, princípios de nutrição, Psicoterapia
Transpessoal. Cuidava-se do todo. Surgiu com força toda uma nova tendência a
ficar atento aos nossos alimentos e de tudo aquilo que ao ser introduzido no
nosso corpo se tornaria parte do nosso sistema.
Hoje parece que nada alimenta esta geração que
não foi treinada a discriminar e se alimentar daquilo que o seu corpo pede. E haja anabolizantes para aumentar a massa
muscular, laxativos e diuréticos para artificialmente manter o peso.
Aquela foi uma era plena de rituais; estes
serviam para sublinhar, em letras coloridas, passagens importantes da vida.
Assim como a Natureza tinha suas estações. Para prestar atenção e guardar no
peito estes instantes que serviriam de inspiração em momentos menos
afortunados.
Nem o ritual diário da refeição familiar em
conjunto, momento este em que eram compartilhadas e valorizadas as vivências do
dia, em que se trocam histórias, dando colorido aos acontecimentos. Esse jeito de viver não permite que se teçam
relações, introduzindo o grupo familiar num enredo que vai se tornando
importante porque compartilhado. Dessa maneira, as relações esfriam, viram
cinza… O contato com os “pioneiros” da família, nome mais correto para os
membros mais velhos, se outrora era excessivo, levando algumas vezes a uma
rigidez de hábitos e costumes, hoje é inexistente. O espaço da refeição
conjunta foi tomado por uma série de refeições individuais, mal aquecidas num
microondas, enquanto se assiste a televisão.
Naqueles tempos, todos os membros da família
eram valorizados. Cada geração tinha a
sua função. Desde o pequenininho até o mais velho. Porque a noção de processo,
do todo, de polaridade, do grupo total, do clã, dava um precioso sentido de
segurança e pertinência.
Do jeito que estamos vivendo, em que tudo e
todos são descartáveis, o campo está fértil para que se instale uma enorme
solidão. E a importância da televisão
consiste em reduzir o nível de estimulação ao mínimo, para que o sono venha
logo, porque amanhã toda a correria se reinicia…
É importante fazer muitas coisas ao mesmo
tempo. É assim que se demonstra a competência. Existe uma triste confusão entre
estar feliz com estar maníaco. Fazer pouco dá impressão de deserto, de
paradeira. E quando estamos exaustos de tanto correr com a cabeça e com o
coração, relaxamos saindo para correr de verdade em algum percurso bem difícil
e acidentado, de preferência.
Houve um tempo em que, o que buscávamos era um
corpo funcional, elástico, bonito em sua fluidez, coerente com a etapa de vida
da pessoa, e até valorizando suas respectivas marcas que contavam histórias.
Hoje o lema “no pain, no gain” é tomado
literalmente. Ao freqüentar academias,
o que vejo é em bando de gente “puxando ferro”. E me lembro de filmes antigos, onde sob a lei da chibata,
escravos transportavam enormes blocos de pedras para a construção de
pirâmides... O que me dói hoje é perceber que a chibata está do lado de dentro
das pessoas! As academias de “saúde”
ensinam que o seu corpo tem de caber num molde estipulado pelos donos da moda,
em geral pessoas que odeiam o ser humano. E dá-lhe pancada, e dá-lhe mais peso,
mais força, e se o corpo não atender ao treino, sempre existem fórmulas mágicas
que lhe prometem um lugar no Olimpo dos que conseguem caber naquilo que se
chama modernidade…
É com espanto que percebo que esta nova
geração não teve possibilidade de acesso ao sonho que nos embalou por algum tempo,
quando julgamos ser possível, através de muita persistência negociar com a
potente capacidade construtiva e também destrutiva que reside em nós…
Sou tomada de perplexidade e rebeldia quando
observo esse estado de coisas. Sinto vontade de levantar a voz em protesto e ir
remando contra esse fluxo. E subversivamente convidar as pessoas ao redor a
recuperar suas histórias, com atenção e dedicação, construindo o próprio tempo…
Fico me indagando como ser moderna e atual
sendo simples, sem ter de
renunciar aos anseios
e sonhos, tendo espaço para
con-viver.
Como ser coerente consigo mesmo sem
desrespeitar o que importa em termos humanos? Como fazer a tessitura de uma
rede afetiva que garanta um espelho nítido onde cada um pode se ver como digno
de ser amado, perfeito e singular?
Como transmitir a noção de tempo onde existe a
possibilidade do ensaio, da escolha, do aprendizado? Onde não é preciso lidar o
tempo todo com interrupções, estilhaços e delírios?
Então, insistentemente convido-os a virem
comigo e seguindo a antiga tradição, buscar a quietude, dando espaço para o
mergulho e a consulta à biblioteca interna, aquela que fica guardada no fundo
do coração, e que embora só seja visitada em situações de crise, lá está,
esperando com a porta entreaberta...
Vamos lá?